Parte 1: o que é o inferno? O inferno existe?
Nada é tão difícil de entender, ou aceitar, como o inferno. Não só é difícil de entender, como é um assunto difícil de se tratar e conversar. Em nosso mundo de constante busca por ‘auto-ajuda’ e algum tipo de espiritualidade, esse é um assunto cada vez mais difícil. Eu já ouvi, diversas vezes, pessoas argumentarem que a Igreja joga muita ‘negatividade’ nas pessoas, falando de culpa, pecado e, claro, inferno. E que seria melhor seguir uma religião, seita ou doutrina que fale o tempo todo de ‘pensamentos positivos’, energias, luzes, e qualquer coisa que faça a pessoa se sentir bem. Aparentemente, se sentir bem é se manter eternamente em ignorância. Ou fugir dos problemas. É uma fuga inútil. É como brigar com o jornal que anuncia o tsunami que vai lavar sua cidade do mapa com você junto. Depois se sentar, dizer que isso é muita negatividade, e esperar passar. Mas, se o tsunami é um fato, ignorá-lo é suicídio. Não importa o quão ‘negativo’ isso lhe pareça. O mesmo vale para o inferno.
Mesmo dentro da doutrina Cristã, mais e mais teólogos, pastores, escritores, e pregadores populares, vêm defendendo que o inferno ou não existe, ou que todos se salvarão. Por outro lado, também é justo dizer que, no geral, cada vez menos teólogos, pastores, escritores etc falam sobre o inferno, mesmo de forma séria. Tampouco falam sobre pecado, culpa e ‘negatividades’ como essas. Não é interessante para alguns, e outros preferem não tocar num ponto sensível para o homem moderno. Os que falam, diminuem a questão.
O que sabemos sobre o inferno, e como essa doutrina sobre o inferno (hadesologia) deve ser entendida?
O grande filósofo Peter Kreeft já escreveu mais de uma vez sobre como é bastante visível que Deus nos presenteava com um pouco de informação por vez, o suficiente para o homem daquele tempo poder entender e lidar com determinados assuntos em seu devido momento. No caso, o homem sempre teve uma noção de que algo como o inferno existia. Muito embora a visão de inferno sempre tenha sido uma das mais confusas e pouco definidas entre todos os povos, religiões ou filosofias. Os cristãos tomam por base os escritos sagrados que formam o Antigo Testamento. Neles, muitos autores identificam o Sheol como algo mais próximo do inferno. Sheol, ou Hades depois da tradução para o grego (Septuaginta). Porém, o Sheol parece muito mais o purgatório do que o inferno, que é tratado por Gehenna ou Tartarus no Novo Testamento. Para o judaísmo, conforme as escrituras, Sheol é um local de purificação. As almas jamais ficariam ali para sempre. Aliás, o tempo seria sempre o mesmo, e as almas ou seriam purificadas e entrariam no Paraíso, ou seriam destruídas para sempre. Para a doutrina Cristã, isso não é possível. Uma alma não é destruída. Ao mesmo tempo, ela não pode ficar para sempre num local de purificação. Ou ela se purifica e vai para o Paraíso com a vinda definitiva de Cristo, ou ela nem passa por isso e vai direto para ele, ou recusa tudo isso e vai para onde? Para o inferno!
A doutrina da Igreja sempre nos reafirma que Deus é amor (Deus Caritas Est). O inferno é fruto direto do amor de Deus. Isso parece contraditório, e a modernidade não pode aceitar. Mas é preciso que se entenda essa afirmação. Você a entende quando se acrescenta uma segunda afirmação, a de que Deus nos ama tanto que nos deu o livre-arbítrio. Deus nos ama tanto que não queria escravos, ou autômatos que diriam “sim, mestre”. Ele queria que nós pudéssemos escolher amá-lo. Se não é uma escolha, não é amor. Se você não diz “sim” livremente e de todo coração, você não ama de verdade a pessoa. Assim também é com Deus. E aí está a questão do inferno. O homem pode escolher não amar a Deus. O homem pode escolher ignorá-lo, ou mesmo odiá-lo. C.S. Lewis definiu corretamente o inferno, dizendo que é um lugar em que a porta está sempre trancada por dentro. Isso é corretíssimo. O inferno é uma escolha. É você escolher se desligar de Deus. É fruto do livre-arbítrio. Fruto de um Deus que nos ama tanto que nos dá o direito de não O querer. A existência do inferno torna-se uma lógica inescapável se você acredita no livre-arbítrio. A menos que sua crença seja num Deus que não te dá esse direito. Nesse caso, você é um autômato, com seu destino todo pré-traçado, e suas ações são como as de um ator encenando seu papel. Mas se Deus é amor, o livre-arbítrio existe. Se o livre-arbítrio existe, você pode escolher não acreditar em Deus, ou acreditar mas dizer “não” a ele. Se você assim o faz, você escolhe se desligar de Deus. Isso é o inferno.
Entendamos agora que nem o paraíso é flutuar sobre nuvens e comer ambrosia o tempo todo, nem o inferno é literalmente fogo e tortura eternos. O paraíso é você viver em comunhão com Deus. Em comunhão com a perfeição e com o amor absoluto, você nada precisa, e nem nada o incomoda. Separado de Deus por escolha pessoal, você vive eternamente sem amor e incomodado. Parafraseando o teólogo Robert Barron, “imagine que você está na melhor festa da sua vida. Tudo é bom. Você se sente querido e está passando o melhor tempo da sua vida. E todos parecem estar se sentindo da mesma forma. A pessoa que está no inferno é como aquela que você percebe que, no meio dessa festa maravilhosa, está num canto, claramente incomodado com tudo o que é bom”. Não se deve, no entanto, diminuir a agonia de uma eternidade separado do amor de Deus. É a vontade que nunca te deixa, como o fogo que a tudo consome, com a eterna tortura de ter escolhido viver sem isso.
Blaise Pascal disse (não com essas palavras, mas assim ficou conhecido) que todo homem sente um vazio, um “vácuo em forma de Deus” no coração. É uma bela e brilhante definição. Você pode racionalizar sua vontade, ou revolta, e não mais acreditar em Deus. Você pode rejeitá-lo. Mas isso não muda o fato de que o homem nasce com esse sentimento, ou busca eternamente por Ele. É um direito seu não aceitar, não gostar, ou não acreditar em Deus. Logo, não acreditar no inferno. Mas, assim como no caso do tsunami, ignorá-lo não o faz ser menos verdadeiro.
Continua no próximo artigo.
Em Cristo, sob a proteção da Virgem Maria,
um Papista.