Aurelius Ambrosius, conhecido pelo mundo como Santo Ambrósio, bispo de Milão, viveu apenas 57 anos. A julgar pelo seu impacto no mundo e no cristianismo, seria possível imaginar que ele tivesse vivido muito mais.
A história de Santo Ambrósio tem que ser bem situada para ser compreendida perfeitamente. Se o cristão deve antes ser um produto daquilo que é eterno, e não daquilo que é do seu tempo, é errado que o cristão não ofereça exatamente essa visão do que é perene a quem é refém dos tempos, o homem. A alma humana é feita para a eternidade em comunhão com Deus, mas a pressão dos tempos é implacável. Não existe outra possibilidade para a Igreja Militante senão evangelizar todos os povos (Mc 16,15), e lutar para que a Palavra de Deus mude o homem inserido no tempo para que sua vida após a morte seja na glória da Igreja Triunfante! É com essa idéia que podemos entender melhor os santos que se destacaram na multidão, e assim foram reconhecidos pela Igreja. Homens que nos deram uma amostra da eternidade sem evitar lidar com o aqui e o agora da vida de pecados na Terra. Com isso na cabeça, podemos entender melhor a Igreja e o mundo da época de Ambrósio de Milão.
Nascido em 340, onde agora é Trier, na Alemanha, e antes era parte da Gália Belga, no Império Romano, Ambrósio era filho de um Prefeito Pretoriano e de uma mãe cristã inteligente e devotada. Na época, o Império Romano era dividido em quatro prefeituras pretorianas. Isso mostra a importância e as ligações políticas de seu pai. O que explica a primeira carreira escolhida por seu filho, certamente não sem pressão familiar. O mais importante é entender que, depois da paz na relação da Igreja com o Estado, vinda com o Imperador Constantino, a Igreja se via em uma situação completamente nova. De fato, não é difícil concordar com os autores que dizem que a Igreja não estava preparada para aquela situação. A Igreja crescia de forma avassaladora estando nas catacumbas, perseguida, e sempre em conflito com o Estado. Constantino não teve saída a não ser flertar com o cristianismo. Essa nova situação era inegavelmente boa para os cristãos e, muito embora muitos imperadores depois de Constantino terem tentado retornar ao paganismo e à perseguição aos cristãos, a brutalidade e o isolamento de antes jamais retornou. Tal estado de paz (ou aparente paz) pode ser desafiador para quem se via em uma eterna situação de resistência. Um problema que não arrisca vidas, talvez, mas um problema para a alma. A facilidade de certos períodos e situações sempre apresentou tremendos desafios para os cristãos. Os resultados de certa acomodação foram, frequentemente, catastróficos.
Os cristãos em paz com o Império tinham que decidir como a Igreja se portaria dalí pra frente. Para os cristãos do oriente, a Igreja deveria ser a voz do imperador; seu monarca um “Rei Cristão”, que promoveria o cristianismo com a força do Império; um instrumento divino servindo a Deus e Sua Igreja. O cristianismo do ocidente, principalmente depois de Ambrósio, via o Estado com reservas e desconfiança. A Igreja deveria ser separada do Estado; “a César o que é de César” era seguido ao pé da letra no espírito ambrosiano*. Toda essa nova realidade, e a confusão dessas primeiras décadas, fizeram com que tanto a Igreja como o Estado tivessem dificuldades em lidar um com o outro. Não ajudava em nada o fato da Igreja do leste e a do oeste terem uma visão diferente da mesma situação. Como até hoje, é natural também que, dada a oportunidade, o Estado queira impor sua vontade. É nesse momento que Ambrósio se torna não só fundamental, como um exemplo do que seria a Igreja e seu pensamento pelos próximos séculos.
Seguindo a carreira política de seu pai, Ambrósio estuda em Roma. Além da retórica e a lei, Ambrósio estuda também literatura e, apesar de não ter treino formal em teologia, seus escritos e ações demonstram que mesmo sob a pressão de uma carreira na política, o jovem Ambrósio certamente se dedicou à teologia e à filosofia tanto quanto os estudantes de grandes centros romanos. Não parece cabível que todo o seu incrível pensamento teológico do futuro tenha vindo de uma vez, aprendido por obrigação e rapidamente. Existem homens de extremo bom senso e maturidade intelectual, preparados para dar saltos, mas assim já é demais.
Escolhido para um cargo de prefeito consular, Ambrósio assume o cargo que seria, na prática, governador da região da Ligúria e Emília, cuja capital era Milão. A cidade de Milão era considerada a segunda mais importante da região, praticamente uma segunda capital. Apenas Roma, é claro, era mais visível. Logo, o bispo de Milão tinha enorme projeção no cristianismo. Durante o governo de Ambrósio, o então bispo de Milão era um herege ariano. O arianismo, como já comentado neste site (ver mais artigos sobre os Doutores da Igreja), não só corria solto, como crescia infiltrado entre os poderosos com a ajuda dos hereges. Quando o bispo Auxêncio morreu, Ambrósio foi para frente da Igreja tentar evitar conflitos pela sucessão, já que a disputa entre os arianos e católicos ortodoxos era acirrada. Lá ele ouviu a multidão gritar “Ambrósio, bispo de Milão”! Na época, não era proibida a escolha e ascensão de um leigo diretamente para o comando de uma diocese, ainda que ocorresse apenas em casos raros. Ambrósio não só recusou como tentou fugir! Mas assim que a pressão do Império cresceu, “entregaram” Ambrósio, que cedeu e foi batizado (batismo tardio era comum), ordenado e consagrado como Bispo de Milão.
Assim que se tornou mais um na sucessão apostólica, Santo Ambrósio assume a postura ideal para um homem na sua posição. Ele larga o conforto que sua vida anterior lhe proporcionava, e prega uma vida ascética de oração e caridade. Ele aprofunda seu estudo teológico e filosófico, e sua ótima educação e domínio da língua grega ajudam demais nesse momento. Um homem brilhante, ele logo está pronto para confrontar todo herege que bater à sua porta. Inclusive aquele que seria depois um santo, um dos maiores exemplos de conversão, e um dos mais influentes teólogos e filósofos da história, Santo Agostinho.
Ambrósio é um dos grandes responsáveis pela limpeza da diocese de Milão, marcada com a queda brutal do arianismo. Uma vitória crucial pela cidade ser uma diocese tão importante. Seu exemplo pessoal de santidade, e seu conhecimento teológico, mudaram a cara do cristianismo. O homem que não queria ser bispo, foi um dos melhores da história. Quando o imperador, em uma manobra de guerra vista como populista, massacrou aproximadamente sete mil pessoas em Tessalonica, Santo Ambrósio fez o impensável: ao receber o imperador na porta da igreja, ele barrou sua entrada e a participação nos sacramentos! Ambrósio disse ao imperador que ele havia cometido graves pecados, e que era preciso um ato de contrição público que demonstrasse o seu real arrependimento. Tal ordem não só é impensável contra um imperador romano, como é de uma coragem ímpar! No final das contas, a santidade do bispo de Milão venceu o homem mais poderoso do mundo, que se arrependeu, pediu perdão, e depois se confessou. Tal exemplo enviou sinais inequívocos de que o arianismo não teria mais folga. E que Milão agora tinha um pastor de ovelhas que era um exemplo a ser seguido por todo o mundo cristão.
O jovem do norte da África, Agostinho de Hipona, então um herege, buscou fama e glória ao confrontar o bispo Ambrósio. Um gênio, Agostinho era o trunfo dos hereges. Mas saiu dali e se tornou um católico de ferverosa ortodoxia. Como isso é possível? Algum argumento que ele não soube responder? Algo no debate que o converteu por se sentir “derrotado”? Claro que não! Em sua magnum opus, “Confissões”, Santo Agostinho diz que duas foram as razões principais para a sua conversão: sua mãe, Santa Mônica, que com sua fé, devoção e amor, jamais abandonou o jovem Agostinho quando este se desviava do caminho e ignorava seus apelos; a outra razão, nas palavras do santo:
“O que moveu o coração deste jovem retórico africano, cético e desiludido; e o que o impulsionou definitivamente para a conversão não foram as esplêndidas homilias de Ambrósio.
Foi o testemunho do Bispo e de sua Igreja de Milão, que rezava e cantava como um só corpo.
Foi a Igreja que resistiu aos planos tirânicos do Imperador e de sua mãe, que ainda em 386AD ordenava novamente que uma igreja fosse erguida para a celebração ariana.
No lugar em que seria erguida a igreja, o povo devoto estava pronto para morrer com seu bispo“.
Este lindo testemunho de Santo Agostinho nos mostra, mais uma vez, que a santidade é a maior virtude. O exemplo de vida é muito mais importante do que qualquer palavra, do que qualquer retórica, pois palavras podem ser usadas para distorcer e enganar. Mas as obras tudo revelam e demandam fé (Jo 10:38). O determinante é a fé que faz milagres. Como o que Ambrósio de Milão fez em uma diocese dominada pela heresia e por um imperador faminto por mais erros. No final, foi a simplicidade de sua ortodoxia e fé que fizeram de Santo Ambrósio o poderoso exemplo cristão que jamais deve ser esquecido. Sua santidade moveu montanhas, imperadores, e comoveu um dos maiores gênios que já andou sobre a terra, outro Doutor da Igreja, um jovem africano que mudaria o entendimento do mundo sobre Cristo e Sua Igreja.
Santo Ambrósio, exemplo de luz na escuridão; bispo dos bispos que nunca quis sê-lo; inimigo da heresia e amigo da liberdade, da fé pura e da ortodoxia; filho fiel da Santa Igreja Católica; olhai por nós! Olhai por nós em tempos de heresia e um mundo hostil à Igreja que o senhor defendeu com amor e exemplo de vida!
Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,
um Papista.
*sobre o “espírito ambrosiano” de dar a César o que é de César na administração da Igreja: talvez o leitor entenda a ironia do que foi o “Banco Ambrosiano”, e o escândalo envolvendo uma instituição que deveria ter se lembrado melhor do pensamento do homem que inspirou seu nome.