Muito se fala sobre a “marca de Caim”. Embora ela tenha gerado alguns contos e superstições boas até para o cinema, a marca é um fato que precisa ser interpretado e lembrado neste momento tão confuso do mundo.
Quando mães matam seus filhos sem pestanejar; irmãos matam irmãos; quando famílias se destróem (ou quando a própria família se torna um ‘conceito’ que a modernidade deseja destruir); quando a vida se tornou algo tão egoísta que já não se sabe mais como conviver pacificamente com o vizinho mais próximo; talvez seja a hora de reexaminar a história bíblica para que o ontem explique o nosso hoje.
Caim foi o primeiro filho de Adão e Eva. É razoável supor que Caim imaginava que, como primogênito, ele seria o escolhido por seu pai para receber sua benção e um papel de liderança na família. Testados por Deus, Caim é preterido e seu irmão Abel é bem visto aos olhos do Senhor. A Tradição nos fala sobre essa passagem sob vários aspectos. Primeiro, o simbolismo do sacrifício que Abel apresenta a Deus na forma de seu melhor cordeiro. Um símbolo claro que se cumpre finalmente em Cristo, mas que também aparece em momentos como o sacrifício de Abraão. O segundo aspecto é o do despojamento. Abel abre mão do que ele tem de melhor, enquanto Caim, que cuidava da Terra, dá a Deus o que ele facilmente podia catar. É assim que a Tradição judaica interpreta essa passagem, com Caim dando o que lhe era supérfluo. Isso também encontra eco nas palavras de Cristo. Por exemplo, em Lc 21,2-4, a passagem conhecida como “a oferta da viúva“. Os ricos dão o que não lhes faz falta, e a viúva pobre dá o que lhe fará muita falta.
O que se segue todos conhecem. Caim, ao invés de repensar seu modo de vida, mata o irmão. Como bem aponta o Dr. Scott Hahn, ciúme é um sentimento fraco demais para isso. É por inveja! Ciúme deseja o que a outra pessoa tem, enquanto a inveja cria ódio contra quem tem o que você deseja. O livro da Sabedoria (Sb 2,24) nos mostra como a inveja, juntamente com o orgulho, está no centro do mal do demônio.
Quem cultiva esses sentimentos, cultiva também uma família marcada por eles. A família de Caim alcança as alturas da perversidade em sua época. Em Gn 4,19 nós vemos a primeira descrição de poligamia, uma perversidade sexual que volta a nos assombrar nos dias atuais. Foi Lamec, da linhagem de Caim, que iniciou essa aberração. O mesmo Lamec se gaba de ser um assassino ainda maior que seu pai (Gn 4,23-24). Há um simbolismo macabro nessa passagem (Gn 4,24). Lamec diz que se Caim for ‘vingado’ (é como o egoísta chama sua reação contra o que ele mesmo causou) sete vezes, Lamec será ‘vingado’ setenta e sete vezes. Sete é o número da Aliança com Deus. Ao usar esse simbolismo, Lamec admite uma deformidade, uma caricatura macabra da Aliança divina. Ou seja, Lamec promove uma aliança demoníaca.
Esse tipo de aliança é muito mais grave do que o chamado “pacto com o demônio”. Não é algo imediatista, para ganhar algo (e perder tudo). Mas é uma relação profunda e sem volta com Satanás. Uma servidão escolhida e abraçada livremente. Literalmente: uma Aliança Satânica.
Nos dias atuais, as coisas não são muito diferentes. A diferença é que, ao contrário daquele tempo, em que a linhagem de Caim é praticamente deixada de lado como uma insignificante parte da humanidade, as atitudes do mundo moderno não deixam dúvidas: a linhagem de Caim hoje é numerosa e poderosa, dominando os meios de comunicação e cultura, bem como se espalhando pelo povo e encontrando poucas barreiras pelo caminho.
É fácil comprovar essa afirmação. Pelas ações reconhecemos a quem a pessoa serve. O que mais tem acontecido nos tempos modernos, senão a mais completa degradação?
A história de Lamec, sua poligamia e violência, confirma o que a Tradição sempe afirmou: a luxúria, quando desmedida e sem limites, vem sempre acompanhada de violência.
A revolução sexual, com toda forma de “libertação” que diz ter trazido, veio acompanhada de um aumento na violência que não tem como ser ignorado ou relacionado. Violência cotidiana que só encontra paralelo nas piores ditaduras ou guerras. Se, por exemplo, as ditaduras comunistas exterminavam pessoas por um propósito claro; o modernismo, que se opõe a qualquer limite, ignora propósitos para o extermínio de forma igualmente demoníaca.
Lembremos o que foi falado antes: a Aliança de amor divina, na representação falsa do demônio, é mero escárnio na forma de aliança. É como um mundo paralelo em que o belo daqui se torna feio lá. O que na Aliança de Deus é amor, na aliança maligna que carrega a marca de Caim se torna luxúria e violência, imitações baratas e disformes da beleza do amor.
O que antes era uma união sacramental e indissolúvel, em que o prazer era mais do que mero passatempo físico, mas uma união total em devoção ao Senhor que ainda gerava uma família; agora é uma versão em doses pequenas e sujas, que clamam por mais doses e mais sujeira, e terminam por custar o que nós temos de melhor, nossa alma imortal, sem nada entregar a não ser o vazio.
Se antes havia respeito, hoje só há o abuso. Se antes se pregava uma moral sólida que libertava no amor, hoje existe uma falsa libertação que aprisiona na degradação e completo desrespeito. Quem prega o ódio e a escuridão da alma nas relações acusa o outro lado de não querer lhe dar o que é seu por ‘direito’. É a marca de Caim gritando em nós!
Santo Inácio de Loyola criou a Companhia de Jesus, conhecida tradicionalmente como “os Jesuítas”. A modernidade apressada ignora uma das facetas mais belas da vocação inaciana: o discernimento. O carisma Jesuíta, hoje estranhamento ignorado por alguns, tem como uma de suas jóias mais preciosas o discernimento da alma. Não é mera distinção de ‘profissão’, para decidir se você vai ser padre ou, quem sabe, engenheiro e ter mulher e filhos. É algo muito mais profundo! É o discernimento entre o bem e o mal; entre Deus e o demônio! É definir se você está no exército de Cristo ou nas hordas do demônio. Direto demais para o mundo moderno? Talvez seja por isso que precisamos tanto disso!
Eu nunca li algo sobre um trecho específico da Bíblia ter influenciado Santo Inácio no desenvolvimento do carisma do discernimento. Obviamente o bom entendimento da Bíblia inteira é o melhor caminho, mas eu não posso deixar de pensar nesse belo carisma inaciano ao ler a história da Queda do homem. A história de quando Adão e Eva têm uma escolha a fazer, e decidem não pela confiança em Deus, mas em confiar no demônio, uma escolha imediata ao invés de uma escolha sobre a eternidade. Ou a escolha de Caim em não confiar no Pai amado, que se não deu a ele o que queria naquele momento, certamente tinha um bom motivo para fazê-lo, e um plano amoroso para o futuro. Daí por diante, sempre que o homem tira os olhos de Deus, ele afunda (Mt 14,28-31).
É preciso repensar nossas ações em termos profundos e sem meias palavras como no (real) discernimento inaciano. A quem vamos servir? Que caminho escolheremos para a nossa vida? Qual é o impacto dessa escolha para a nossa vida e para o próximo? Esse tipo de pergunta deixou de ser feita por todos nós. Vivemos de prestígio, cobiça e sexo! Todos são sintomas compatíveis com a marca de Caim!
Todos carregamos a mácula do pecado original. A marca de Caim é ir além disso e escolher uma falsa aliança com um falso deus.
É preciso um profundo discernimento para sobrevivermos e cumprirmos nossa missão de levar almas a Deus. Não há como enfatizar mais essa idéia de discernimento para o bem do nosso futuro.
G. K. Chesterton, comentando no capítulo “O Mundo que São Francisco de Assis Encontrou”, no livro sobre o santo, diz: “[…] O efeito de se tratar o sexo apenas como algo inocente e natural foi que toda coisa inocente e natural foi encharcada de sexo. Sexo não pode ser admitido como mera igualdade entre emoções elementares, ou experiências como comer e dormir. No momento em que sexo deixa de servir, ele se torna um tirano! Há algo perigoso e desproporcional em seu espaço na natureza humana, por qualquer que seja a razão; e isso se tornam necessárias uma dedicação e purificação especiais. A conversa moderna sobre o sexo ser livre como qualquer outro sentido; sobre o corpo ser belo como qualquer árvore ou flor; é ou uma descrição do jardim do Éden, ou um item de uma péssima psicologia, do qual o mundo já se cansou há dois mil anos.” (do livro “São Francisco de Assis”, 1923)
Ou encaramos de frente o fato de que a relação do mundo moderno com o sexo desandou há muito tempo, ou não temos esperança de recuperação. A mudança, uma volta a um tempo em que se sabia escolher (e havia escolha), indica apenas um caminho: o sexo no Casamento, quando ele é elevado à sua beleza máxima como sinal de realização de uma Aliança, um Sacramento. Quando ele pode gerar filhos e construir famílias, e não destrui-las. Quando ele é mais belo e gerador de amor e completitude, e não de dor e vazio.
Oremos pelo discernimento, pelo sexo em seu contexto sagrado, pela escolha pelo Senhor, e não pelo mal. A marca de Caim não nos controla. Nossa linhagem é uma família divina. Nos comportemos como tais!
Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,
um Papista