Continuando o tema do artigo anterior (https://www.papista.com.br/2017/10/13/sagrada-tradicao-escudo/ ), examinemos as consequências práticas do documento Magnum Principium e a maior autonomia dos bispos em uma visão histórica e doutrinal.
Por nossas próprias faltas, permitimos que os brilhantes séculos até a glória do tempo de Santo Tomás de Aquino, desaguassem nos desastrosos séculos XIV, XV e XVI. Com as sempre honrosas exceções, tivemos um desastre intelectual de proporções bíblicas, quando pouco depois dos maiores milagres, o povo de Deus voltava a cair nos piores erros. Com a pobreza e bagunça institucional, uma solução drástica foi necessária. A Igreja concentrou o poder em Roma, dissolvendo a forma que perdurou por mais de 1500 anos e nos propiciou a glória da era Patrística, a independência relativa dos bispos e suas dioceses.
Parafraseando o grande Hilaire Belloc: “A Igreja precisava de reforma, e não da “Reforma” (protestante), mesmo que as duas coisas se escrevam da mesma forma“. A confusão doutrinária em dioceses locais fez surgir a sanha dos reformadores, que viram problemas mas fizeram um diagnóstico profundamente equivocado e aplicaram um remédio pior ainda.
Isso forçou a Igreja da época a concentrar o poder. Mas assim como as leis de pureza do Antigo Testamento, tal medida deveria ser temporária. Ela era contrária à tradição de mais de 1500 anos, quando cada diocese podia ter seu próprio rito e suas diferenças litúrgicas, como muitas faziam amplo uso dessa autonomia, vide os ritos do oriente. Mas assim como Moisés tinha autoridade para aplicar as leis deuteronômicas (também temporárias), a Igreja tinha a autoridade para aplicar a dureza da uniformidade, mesmo sendo contrária à tradição de autonomia das dioceses (um tipo de licença para a ação da autoridade que alguns se recusam a dar à Igreja hoje em dia). Tal mudança, porém, era por demais contrária à tradição para ser definitiva. Perdurando por tempo demais, isso teve consequências, como examinaremos a seguir.
Antes, porém, é mister apontar que esse é outro caso óbvio da diferença entre “Tradição” (T maiúsculo, ou seja, Sagrada Tradição, aquilo que se relaciona doutrinalmente com a Revelação) e “tradição” (t minúsculo, que compõe as tradições desenvolvidas pelo povo de Deus). Tradições (com t minúsculo) como o uso da linguagem, seja o Latim ou o Grego, ou qualquer língua, que importantes e belas como seja, não se relacionam com a Revelação, e podem ser alterardas. “Podem”, não significam que devem, mas que podem ser alteradas pela autoridade da Igreja. Elas constituem importante parte da cultura cristã, e devem ser questionadas com respeito e cautela. Como os costumes litúrgicos que foram alterados e uniformizados na Contra-Reforma.
Voltando à questão da concentração de poder. Necessária como ela foi, a concentração inegavelmente enfraqueceu a nossa responsabilidade. Com o crescimento da Igreja pelos cinco continentes, a situação se tornou insustentável no século XX. Como em toda concentração de poder que cria autocratas e uma burocracia pesada e ineficaz, os liberais aproveitaram para se infiltrar e a promover todo tipo de aberração litúrgica ou doutrinal. A solução temporária que já perdurava há quase cinco séculos, a concentração de poder em Roma, se mostrou, ao longo do crescimento do catolicismo mundial, totalmente incapaz de lidar com todas as crises e necessidades da Igreja.
É da natureza humana abdicar de sua responsabilidade se houver um “poder babá” para tomar conta. Sem nenhuma surpresa se observarmos os acontecimentos com o devido olhar histórico, o catolicismo pelo mundo se tornou fraco e sem responsabilidade pessoal. O século XX nos deu a capacidade de viajar rapidamente para qualquer lugar. Sem contar a velocidade de comunicação. A facilidade para articular todo tipo de movimento produziu o esperado: a proliferação de movimentos e estratégias para ignorar a Sã Doutrina!
Qual era a nossa resposta? Como crianças, gritamos: “Papa! Papa! Resolva tudo!”. Os bispos se viam sobrecarregados e sem autoridade. Ao contrário do que alguns imaginam, a ausência de colegialidade e a concentração de poder criaram essa situação. O mal não segue regras e não espera nada, enquanto os bons tinham sua autoridade diminuída e precisavam esperar uma complicada e demorada resposta de Roma para tudo. O que um dia foi tão necessário, agora se tornava uma fonte de paralisia por conta dos milhares de casos para análise. A Congregação para a Doutrina da Fé, embora dirigida por décadas por gênios como Joseph Ratzinger, não poderia jamais dar conta de tudo. Muito menos o Papa, que assumia o papel que lhe é devido, de Pastor Universal, com deveres diplomáticos, viagens, e documentos que deveriam cobrir a doutrina no geral.
Especificamente sobre a liturgia, alguns casos são bem documentados por vaticanistas como John Allen Jr. Durante a “guerra litúrgica” dos anos 90, diversos prelados de países com um catolicismo que crescia em sua missão de espalhar o Evangelho, como o Japão, se via incapaz de obter uma tradução adequada para um povo que até meados do século mal teve contato com as línguas estrangeiras, muito menos o latim. Ficou conhecida a reclamação dos bispos japoneses sobre a liturgia. Conhecidos por sua ortodoxia, a tradução que eles apresentaram era a mais adequada, porém, com o antigo modelo de governança, a Santa Sé se viu obrigada a produzir ela mesma uma tradução. O resultado foi considerado desastroso pelos prelados japoneses que, com um olhar para a tradição dos ritos litúrgicos diversos até a concentração de poder contra a reforma protestante, não entendia por que não podiam eles mesmos fazer sua tradução e o Vaticano apenas verificar e autorizar.
Enquanto isso, para cada documento lindo e de rica doutrina produzido na “Contra Reforma” em diante, cinquenta brechas eram exploradas por alguns bispos e sacerdotes do mundo. Especialmente no começo do século XX. A solução viria apenas com o Concílio Vaticano II, com a mais simples percepção do problema: é impossível que Roma resolva tudo sozinha com a Igreja do tamanho que, com a Graça de Deus, foi alcançado nos últimos séculos.
Enquanto muitos viam a colegialidade como uma entrega do poder e da autoridade, ela seria exatamente parte do processo que vemos hoje, uma retomada da tradição da Igreja. Uma retomada do princípio que vigorou por 1500 anos e foi a base da nossa tradição: união sem uniformidade; Roma como símbolo da união e autoridade final, mas não como autocratas que definem tudo para todos, uniformizando os costumes locais. Essa visão nunca foi parte da Igreja, a não ser durante um tempo emergencial. Hoje, ela se provou um problema. Acreditar que uniformidade é sinônimo de união é forçar um conceito que não se encaixa na história. Se a uniformidade de rito, algo impensado pela Igreja primitiva ou os Pais da Igreja, é o destino da Igreja, isso será uma conquista gradual e vinda da decisão dos bispos do mundo todo em comunhão com o Papa. A história da Igreja, no entanto, contradiz essa expectativa, seja ela boa ou ruim. A beleza de qualquer rito não está em discussão, muito menos a sua espiritualidade ou capacidade de comunicar ao povo a essência do sacrifício pascal. Todos os muitos ritos pelo mundo antigo eram ortodoxos, apenas não eram idênticos, e isso nunca foi um problema. Há mais de 1500 anos de história como um forte argumento para afirmar que isso foi um dos grandes instrumentos missionários.
Retomando a autoridade das dioceses, e promovendo uma decisão conjunta, os bispos recuperam a sua autoridade e, muito mais importante: nós somos forçados a assumir a nossa responsabilidade.
Por séculos nós exigimos que o papa resolva tudo. Tudo o que ele não tem como saber ou resolver com uma canetada, e tudo o que nós abrimos mão de observar e participar.
O documento Magnum Principium, ao contrário do que os profetas do apocalipse têm gritado aos ventos, será lembrado como o momento em que nós retomamos a nossa responsabilidade!
Com as novas instruções, na prática, fica ainda mais difícil modificar as traduções da liturgia, já que é preciso uma votação unânime entre os bispos de cada país. Além disso, é preciso a confirmação do Vaticano, além de que Roma continua sendo a responsável pelas partes principais da Liturgia.
Acima de tudo isso, o que fato é que passou da hora de nós participarmos mais ativamente da vida das nossas paróquias, dioceses, e conferências episcopais. Nós somos parte da Igreja tanto quanto os religiosos, mas entregamos a nossa responsabilidade a eles e esperamos que Roma resolva tudo no final, da mesma forma que no mundo secular muitos esperam que um ‘Estado-babá’ resolva tudo para eles. A partir de agora, se quisermos que a ortodoxia seja mantida, temos que assumir a nossa responsabilidade. Mais que isso! Temos que assumir a nossa missão divina!
Magnum Principium, por fim, nos chama a vigiar e participar das decisões em nossas comunidades, a fim de não permitir que conferência alguma tome decisões que o povo de Deus discorda e sabe que são erradas. Já não era sem tempo! Nos esquivamos dessa responsabilidade por muito tempo, e depois apontamos o dedo para os papas culpando-os por tudo que os nossos bispos fizeram.
Se os bispos têm mais autonomia, eles também têm mais responsabilidade. Além de se responsabilizar no dia do julgamento por suas decisões (ou ausências), eles têm que se responsabilizar na terra perante o povo de Deus. Por tempo demais deixamos nossos bispos e conferências correndo soltos enquanto esperávamos que Roma resolvesse tudo com canetadas. A mensagem do Papa (continuando o que vem sido desenvolvido há décadas) é clara: “abracem a responsabilidade, carreguem a sua cruz, e sejam donos do seu destino. Vocês escolherão o caminho de Deus, da ortodoxia, da Sã Doutrina? Ou o caminho da confusão que vem sendo plantada enquanto não temos a capacidade de fazer tudo?”.
O Papa e Roma são as últimas barreiras, não são os exércitos dos fiéis. Esses se mantiveram calados e aceitando tudo nos últimos tempos, mal acostumados e mimados. Roma não foge da sua responsabilidade, ela apenas não deseja mais tomar a nossa. A responsabilidade dos papas é zelar por toda a Igreja, não ser babá de todos. São coisas muito diferentes. É impossível que Roma cuide de todo erro produzido num país continental como o Brasil, o que dirá do mundo todo.
Magnum Principium, uma oportunidade mal compreendida:
O que nós temos em mãos é uma grande oportunidade. Inevitavelmente, o contrário do que os profetas do apocalipse dizem vai acontecer. A Igreja será mais ortodoxa; veremos mais e mais a retomada da forma tradicional da missa; e não permitiremos a implementação não-oficial da Teologia da Libertação. Exatamente porque agora é nossa responsabilidade cuidar disso e cobrar dos bispos que têm o poder para tal. O bem age pela lei, mas o mal nunca precisou esperar por tal “tecnicalidade”. Enquanto esperávamos as respostas de Roma, eles agiram sem temer a autoridade dos bispos. É a hora de dizer a eles que não será mais assim! O fruto está maduro nas mentes e corações da geração mais conservadora dos últimos dois séculos. A nós foi dada a oportunidade de participar da colheita.
Por fim, se tudo isso falhar, é nossa e apenas nossa culpa. Se com isso não conseguirmos abrir mais comunidades tradicionais; mais ensino ortodoxo bastando a autorização de um bispo que ajudamos a escolher com oração e participação; então não merecemos as bençãos de Deus. Teremos falhado em nossa missão ao esperar que tudo seja resolvido à distância. Se não aproveitarmos as possibilidades que Magnum Principium abre para a nossa retomada de responsabilidade, não reclamemos depois, pois não merecemos mais do que a babel litúrgica que permitirmos.
A transferência de responsabilidade para a concentração de poder nunca funcionou. Agora é a hora em que provamos se somos dignos da missão que recebemos, a missão de levar a todos o Evangelho de Jesus Cristo. Se será ortodoxo ou não, depende apenas de nós. Com a cooperação do Espírito Santo, espero que possamos olhar para esses dias e perceber que quase colocamos tudo a perder ao continuar fazendo birra e pedindo que Roma limpe o nosso lixo. Espero que possamos olhar com orgulho para o dia em que cooperamos com o Espírito Santo para tomar de volta as rédeas da nossa missão.
Ou seja: pare de reclamar e comece a participar da sua comunidade! Escreva para o seu bispo sempre que quiser e sentir que é seu dever. Conheça o seu bispo (a maioria nem sabe quem é), seu arcebispo, as dioceses vizinhas e participe dos encontros entre elas. Organize a sua comunidade para aulas, catequese, reuniões, debates, leituras e oração. Participe mais e chore menos ao Papa! A hora é essa! Não desperdicemos a oportunidade.
Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,
um Papista