A Sagrada Tradição como um escudo: a inteligibilidade da fé a serviço do desenvolvimento doutrinal.
A Sagrada Tradição é um escudo, não um porrete. Ela é proteção do “Depositum Fidei“, o “Depósito da Fé” do qual a Igreja é mantenedora. A Tradição é a Verdade da fé que durante toda a História da Salvação foi decifrada aos poucos pelos homens com a ajuda e inspiração do Espírito Santo.
Se de fato a Tradição não muda, com a Graça Divina a Igreja vai descobrindo mais e mais como entender a Inspiração Divina para o seu desenvolvimento. Sempre protegida pelo Espírito Santo, que não permite distorções na Tradição. Negar isso é negar a inteligibilidade da Fé via a cooperação com a Graça Divina, algo que, por si só, é contrário à Sagrada Tradição.
O Católico não precisa ter medo do desenvolvimento doutrinal, muito menos pode ele negar o fato de que tal desenvolvimento aconteceu de forma penosa para os homens que melhor cooperaram com o Espírito Santo ao longo da história. Homens que negaram heresias, evitaram erros, e promulgaram doutrinas. Nada veio em um pacote, tudo foi desenvolvido com a proteção do Espírito Santo em uma linearidade inequívoca e visível.
Quando Pelágio discursou pela primeira vez sobre doutrina, os bispos concordaram (sem promulgar doutrina, mas concordaram no primeiro momento). Foi preciso que Santo Agostinho enxergasse mais longe e cooperasse mais profundamente com a Graça Divina para expor os erros de Pelágio e os confirmar mais tarde como heresia.
A discussão doutrinal é parte do dia a dia da Igreja desde o Concílio de Jerusalém nos “Atos dos Apóstolos” até hoje. Quem acredita que a Tradição é um porrete a ser usado contra quem quer aprofundar o seu entendimento da doutrina está em erro histórico e teológico, pois nega tanto o desenvolvimento doutrinal em si, como a inteligibilidade da fé, um pressuposto teológico.
A Tradição será, sim, usada como um escudo contra quem deseja modificar (no sentido de inverter, distorcer etc) a Santa Doutrina já definida. Se não pudermos enxergar a diferença, corremos o risco da estagnação da fé e do conhecimento. Esses, sim, são a porta de entrada dos erros, e não o diálogo para o desenvolvimento doutrinal, que é a solução e parte do mandato divino da Igreja. Mandato inequivocamente cumprido fielmente nos últimos 2000 anos, mas não sem alguns quebra-molas pelo caminho.
Foi essa mesma estagnação que abriu as portas para o Protestantismo e quase abriu as portas para o Arianismo e tantas outras heresias. Quando saímos da luz trazida pelo desenvolvimento doutrinário do auge da Escolástica até o século XIII, caímos na aridez doutrinal e na rigidez da opulência vazia dos séculos seguintes. De forma que a Igreja, como reflexo da história Bíblica, logo após um dos seus grandes milagres, caiu rapidamente em fé e cultura, senão direto ao erro.
Muitos se esquecem, mas o que se seguiu ao século XIV (logo depois do século mais brilhante, com Santo Tomás de Aquino e outros) foi a brutal estagnação doutrinária, que promoveu um progressivo desmantelamento do conhecimento e da fé. Não por acaso, poucos séculos depois, e ainda sob os efeitos desse esfacelamento, a Igreja se viu lidando com um dos seus piores momentos, a dissidência que se tornou um cisma e a separação dolorosa de tantos irmãos para o erro do Protestantismo.
O problema foi tão grande, que do alto de toda a sua opulência e rigidez, a cúria não possuía os meios para responder sozinha às questões. Foi preciso que a ordem do Oratório francês servisse de braço teológico para que as demoradas e tão necessárias respostas de Trento em diante fossem apresentadas.
Ainda assim, a história é lembrada hoje parcialmente, com Trento oferecendo as respostas como se não tivesse sido um parto doloroso, uma dor que custou muito à Igreja. Quem vive a ilusão de acreditar que aquele momento foi simples e a resposta rápida e eficaz, também acredita que a mesma rigidez e opulência são as respostas necessárias para tudo, inclusive afirmando que não há problema na Igreja diminuir e se separar. “Azar deles”, dizem os rigoristas, como se o mandato divino não fosse uma Igreja Católica (universal) com a união dos irmãos sob a mesma casa, a do Pai.
A resposta será sempre a mesma: a resposta da Sagrada Tradição se dá quando ela vem com o desenvolvimento doutrinal e uma fé vibrante na prática e no estudo. A estagnação do porrete radical tradicionalista gerou ( e gera) apenas feridas no Corpo de Cristo. A mesma que vê qualquer desenvolvimento como uma afronta, e não como a história nos conta: como o uso comum da inteligibilidade da fé em cooperação com o Espírito Santo.
De todos esses momentos ruins da história, o que salvou a Igreja foi a Sagrada Tradição sendo usada como um escudo, pois de tudo isso o que saiu foi a reação católica legítima, isto é, o desenvolvimento doutrinal! Sempre através da cooperação com a Graça Divina e o diálogo entre os membros do Corpo de Cristo. No fim, a verdade sempre triunfará. Apenas, talvez, podíamos evitar certos tremores que ocorrem quando pensamos na Tradição como um porrete, e não como um escudo.
Em suma:
O desenvolvimento da doutrina não é “inovação”, pois a Sagrada Tradição é sempre nova por ser sempre a mesma: a verdade! Desenvolvimento é como passar a mesma verdade imutável de forma a que nós, instrumentos defeituosos, possamos entendê-la melhor e vivê-la com ainda mais fé. Disso não devemos (ou podemos) ter medo, apenas a alegria da fé.
Foi o que fez Santo Agostinho, foi como fez todo Pai da Igreja, e foi como a Igreja respondeu a todas as necessidades do seu tempo. Invocando a Tradição como proteção para um melhor desenvolvimento, e não para evitar o desenvolvimento.
Reflitamos sobre o nosso papel na alegria da fé na Sagrada Tradição, e como nosso estudo e esforço de fé pode contribuir para espalhar a Boa Nova de Cristo de maneira cada vez mais clara para um mundo cada vez mais confuso. Sem medo, mas com esperança e alegria na proteção do Espírito Santo. Assim, quem sabe, seremos bons trabalhadores na vinha do Senhor.
Em Cristo, entregue à proteção do Espírito Santo,
um Papista
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