“Não julgue para não ser julgado” (Mt 7,1-3).
O Sermão da Montanha começa a sua terceira e última parte, que podemos classificar também como o discurso das lições morais, com a tão famosa ordem para que não julgar o próximo e assim evitar que sejamos julgados pelo Senhor por mais esse erro.
Nos dias de hoje, existe uma enorme confusão sobre o que realmente Jesus queria dizer sobre isso. Somos constantemente bombardeados com um falso chamado à inação total, sob a ameaça do julgamento da opinião pública por qualquer comentário sobre algum erro apontado.
Teria Jesus dito que não se deve apontar um erro? Não seria esse o argueiro no olho do próximo que a nossa hipocrisia aponta sem que olhemos para a trave no nosso, como o Senhor ensina logo em seguida (Mt 7,4-5)? Essa interpretação seria um absurdo. Seria um chamamento à frouxidão de caráter; uma paralisia frente ao erro que é absolutamente contrária à mensagem do Evangelho.
Toda a mensagem do Evangelho depende que, ao contrário de Pilatos, reconheçamos a verdade à nossa frente e, reconhecendo-a, ajamos em sua defesa. Ou seja, a busca da verdade é a base para o cumprimento da justiça. Conhecer a verdade, como ensina o Senhor, é o caminho para a verdadeira liberdade (Jo 8,32). Apontar o erro é o único caminho para a caridade, pois não pode haver liberdade sem que a pessoa conheça a verdade.
A verdade é o próprio Cristo. É exatamente por isso que somos chamados à buscar a verdade e mostrá-la a todos. Também é por isso que não cabe a nós usar a verdade como um porrete. A verdade é um escudo, não uma espada. Por ser parte da própria natureza de Cristo, buscar a verdade não pode ser o mesmo que condenar o próximo. Apontar um erro não pode ser seguido do pronunciamento da condenação, pois tal poder pertence exclusivamente à propria Verdade, Jesus Cristo. Cristo é o único julgador, a quem caberá julgar os vivos e os mortos.
Dessa forma, entendemos que o primeiro versículo do terceiro capítulo do Sermão da Montanha (Mt 5-7) de forma alguma nos impede de apontar o erro. Ele nos diz que não cabe a nós julgar e condenar o próximo pelo seu erro. Esse julgamento é restrito àquele que é a Verdade encarnada, Nosso Senhor Jesus Cristo.
Entendemos isso melhor no ensinamento de São Tiago, que em sua epístola explica essa passagem (Tg 4,12). O julgamento, segundo o primeiro bispo de Jerusalém, pertence àquele que tem o poder para fazê-lo em definitivo, para salvar ou destruir. Isso confirma que julgar não quer dizer apontar erros, mas condenar quem os comete.
No mundo moderno, chamado por muitos de ‘pós-cristão’, vemos a revolta contra o absoluto e a verdade. Existe todo um aparato de humilhação pública para quem ousar apontar um comportamento errôneo. Ser chamado jocosamente de ‘obscurantista’ ou ‘dogmático’ é apenas uma forma comum entre tantas. A própria hierarquia da Igreja por vezes se encontra paralisada por esse estratagema e se anula de tal forma a confundir a diferença básica sobre o significado das palavras do Senhor. Ouvindo o mundo e não a Palavra de Deus, membros da Igreja que têm a missão de apontar erros, aceitam o julgamento (!) do mundo e se recusam a cumprir seu dever sagrado. Confundem a busca da verdade e sua missão de apresentar a bússola moral ao mundo com o papel de carrasco que lhes é imputado errôneamente.
Note que à Igreja foi dado o poder de perdoar ou reter pecados (Jo 20,22-23), mas ainda que o julgamento final seja de Cristo e a hierarquia prefira não viver de proferir condenações, a Igreja não poderia jamais abdicar de seu dever moral de ensinar o caminho correto ao mundo, queira ele ouvir ou não.
Confundidos pelo mundo sobre o verdadeiro significado de “não julgar” como ordenado por Cristo, não percebemos que ao não apontar os erros do mundo, nos sobra apenas a sua condenação. Um mundo desordenado que não aceita os seus limites faz exatamente o que exige que nós não façamos: condena!
Condenação é tudo o que o mundo moderno faz indiscriminadamente. Se achando libertado de qualquer absoluto moral, o mundo moderno não está livre, mas preso a um ciclo inquebrável de condenações. Ao mesmo tempo que exige que qualquer comportamento doentio ou errôneo esteja além de qualquer possibilidade de correção, ele condena sumariamente quem apenas ousa apontá-lo.
Em seu magnífico livro “Um Convite à Fé” (título traduzido do inglês: An Invitation to Faith), o Papa Bento XVI ensina: “A fé e a ética cristãs não desejam sufocar o amor, mas torná-lo saudável, forte e verdadeiramente livre. Esse é o exato significado dos Dez Mandamentos, que não são uma série de “nãos”, mas um grande “SIM” para o amor e a vida“.
A verdade liberta. A aversão do mundo moderno à busca pela verdade aprisiona. É a prisão do julgamento e da confusão mental. Desconectados da realidade, os homens exigem que seus erros não sejam corrigidos ao mesmo tempo em que condenam quem tenta. Tudo isso usando a artimanha favorita de Satanás: a distorção da Palavra Divina.
Fora de seu contexto e real significado, as palavras do Evangelho são usadas pelo mundo moderno para o mal, para calar quem os quer bem. Assim como Satanás foge da Cruz e ataca quem a defende, o mundo moderno foge da verdade e ataca quem tenta defendê-la.
Retirada a verdade, só resta o julgamento sumário. A bênção da verdade trazida pela religião judaico-cristã vem na forma dos Mandamentos e do seu cumprimento no grande sermão do Senhor, as Bem-Aventuranças. Uma vez inseridos nessa verdade, somos totalmente livres. Distantes do Senhor, somos prisioneiros de nossos impulsos.
A cultura judaico-cristã trouxe um código moral que nos retirou da barbárie e, elevado definitivamente em Cristo, nos ensinou a verdade do amor que a tudo liberta. Sem a busca pela verdade presente nesse código moral, o que nos resta é novamente o uso da força como juiz definitivo. A virulência do mundo moderno em suas condenações é proporcional apenas ao seu ódio pelos limites.
A prisão do relativismo é o campo de concentração do espírito. A ilusão da liberdade sem limites é a corte do julgamento sumário. O resultado é a mais desoladora cena de um mundo doente e triste. O grande G.K. Chesterton disse: “A própria fúria com que as pessoas saem à procura de prazer é a prova de que eles não encontraram“. Esse é o retrato perfeito do mundo atual, com pessoas exigindo ter seus apetites satisfeitos sob pena de condenar quem pede reflexão e moderação. Tudo isso sob a fachada da ‘tolerância’, que hoje é meramente o capuz do carrasco.
A verdade do Evangelho pode ser ignorada, mas não escondida ou anulada. Ignorá-la tem um alto preço. O único risco que corremos ao aceitar a verdade do Evangelho é de nos tornarmos felizes e completos no amor do Pai. As demandas da responsabilidade são as demandas do amor verdadeiro, um amor que forma uma família divina.
A condenação não faz parte das nossas atribuições. Esse julgamento final não cabe a nós. Viver na verdade e lutar por ela, por outro lado, é parte da obrigação cristã. Apenas assim o Evangelho encontra o seu lar nos corações. Mesmo que para isso a verdade tenha que parti-los antes para depois enchê-los da mais pura alegria do amor de Cristo. A verdade vale a luta, pois a salvação em Cristo vale qualquer sacrifício.
Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,
um Papista
off topic: Mateus, não sei se já leu o livro Through Shakespeare Eyes, do Joseph Pearce, que trata do catolicismo nas obras de Shakespeare. Sensacional, e tem tudo a ver com o título do seu site. Um abraço.
Olá! Eu tenho vários livros do Pearce e gostei muito de todos. Esse é realmente sensacional. Obrigado pela lembrança. Fique com Deus!
Abraços!