Indulgências, o tesouro enterrado

By | 12 de junho de 2018

Antes de falar sobre a história do bem que as indulgências fizeram ao mundo é preciso definir o que é uma indulgência na teologia católica. Porém, só é possível entender o que é uma indulgência se antes entendermos o que é uma punição temporal. O contraste nos ajudará aqui.

Uma punição eterna é o efeito do pecado sobre a nossa salvação, ou seja, tomados pelo pecado, podemos ser condenados à eternidade separados de Deus. Isso é parte do nosso livre-arbítrio e o julgamento é apenas a confirmação das nossas escolhas.

Por outro lado, uma punição temporal é o efeito residual do pecado em nossa vida na terra. O Catecismo da Igreja Católica (CIC), como sempre, nos ajuda imensamente a entender isso falando sobre o que permanece em caso de uma confissão que não é seguida de uma vontade real de cumprir a penitência dada e mudar a sua vida: “A absolvição retira o pecado, mas não remedia todas as desordens causadas pelo pecado” (§1459).

Em outras palavras, o pecado deixa profundos rastros em nós. Ao pecar, escolhemos um ato que nos distancia do Senhor e nos aproxima do mundo (no sentido daquilo que é mundano, sob o domínio de Satanás). Esse tipo de rastro nos distancia de tudo o que é divino, como o amor a Deus e ao próximo, causando estragos graves em nossas vidas na terra.

Quando nos confessamos, somos perdoados do pecado e absolvidos da punição eterna. Mas é preciso retirar o rastro do pecado de nossas vidas, os resquícios que funcionam como âncoras que nos prendem ao que é mundano e que, inevitavelmente, nos levará ao pecado novamente, ou quem sabe até ao vício desse pecado, nos levando à piora da nossa relação com Deus e ao que a Ele pertence, ou seja, tudo o que é bom no mundo e em nossas relações.

Tal desordem temporal é causada pela ausência da penitência, da vontade de não voltar a pecar; é causada quando se ignora que o Sacramento da Confissão é um bálsamo que precisa ser seguido pela vontade de cooperar ainda mais profundamente com a Graça de Deus para que o rastro temporal seja limpo e a nossa luta seja por nos manter por inteiro na Aliança com o Senhor.

As Escrituras nos mostram claramente que tal punição temporal pode ser limpa nesta vida ou mesmo depois da morte, outra prova da onipotência e da infinita misericórdia de Deus. Essa limpeza da punição temporal após a morte ocorre em um estado em que passamos por um tormento purgativo que nos limpa para a entrada nos Céus, a morada do Senhor, em que apenas em total Estado de Graça é possível entrar e participar da Visão Beatífica (Ap 21,27), a eternidade face a face com o Senhor.

Esse tormento que purga os efeitos da punição temporal, é claro, se chama “Purgatório”. Todos aquele que morrer sem estar plenamente limpo do pecado e de seus efeitos, mas também não tiver escolhido abraçar o pecado e receber a punição eterna, será tratado pela Graça de Deus com a oportunidade de purgar seus pecados menores e seus efeitos até ser resgatado para o Banquete do Cordeiro.

As Escrituras nos mostram para além de qualquer dúvida que é possível rezar pelos mortos (2Mc 12,38-45; 2Tm 1,18) e que os mortos podem não ir para o inferno, mas ao mesmo tempo não ser salvos sem antes passar pela purificação (Lc 12,59; 1Cor 3,15), frequentemente descrita nas Escrituras como uma passagem pelo fogo.

Como dissemos antes, uma das maneiras de se eliminar a punição temporal é a penitência, principalmente aquela que é dada ao final da Confissão. Não por acaso ela segue o ato de contrição, exatamente porque nos é dada a chance de reafirmar nossa vontade de não voltar a cometer aqueles pecados e lutar para eliminar esses rastros que podem atrapalhar nossa caminhada novamente.

Para ajudar os mortos, como vimos, é possível rezar pelas almas que possivelmente estão purgando os efeitos dos pecados. Se estão no Purgatório, seu destino final é a Visão Beatífica, ou seja, toda a pessoa nesse estágio de eliminação do rastro temporal já tem a sua salvação garantida e não pode perdê-la. Mas, convenhamos, quem não quer chegar logo ao amor do Pai?

A outra maneira de se eliminar essa punição para vivos e mortos, substituindo as possíveis penitências (para os vivos) e intercedendo pelos mortos (a oração é o primeiro passo), é através das indulgências. Portanto, as indulgências são exatamente a remissão da punição temporal, o resquício dos pecados em nossas almas. Para os vivos ou para os mortos.

Muito se pode concluir disso. A idéia de que a venda de indulgências era uma forma de “vender a entrada no céu” é pura balela, já que as indulgências apenas agem sobre a punição temporal, e não a punição eterna. Quem está no Purgatório necessariamente irá para o céu. Não há mais nada a fazer pelos que estão no inferno, pois eles escolheram a separação total do Senhor. Quem está no Purgatório não pode mais cair, apenas se limpa da punição temporal para a entrada no céu.

Resumindo: uma indulgência substitui a penitência dos vivos ou diminui o tempo de Purgatório dos mortos que lá se encontram.

Como poderia a Igreja fazer isso? Tendo a ela sido dado o poder de ligar ou desligar tudo dos céus (Mt 16,19), a Igreja Católica abre o tesouro dos méritos de Cristo (não poderiam ser os nossos méritos, pois não podemos dar o que não temos) e concede a substituição da penitência ou o tempo de Purgatório dos mortos, limpando-nos da punição temporal. É uma bênção de amor dada pela Graça de Deus e os méritos de Cristo através da Sua Igreja.

Hoje em dia, muitos fogem da doutrina das indulgências pelo suposto abuso da venda de indulgências na época da revolução de Lutero. Seria razoável evitar o assunto se as indulgências não fossem não só parte da Sagrada Tradição (parte da doutrina infalível da Igreja, pois foi confirmada por um Concílio da Igreja. No caso, na sessão 25 do Concílio de Trento), como é uma linda bênção de Deus para Seus filhos, uma prova da Sua infinita misericórdia.

Alguns abusos foram sem dúvida cometidos por alguns homens, mas jamais pela Igreja, que tem plenos poderes para usar o tesouro do Depósito da Fé. Quando fazemos essa diferenciação não é à toa ou truque retórico. Significa que existiram, sim, abusos locais. Porém, isso não caracteriza uma invenção doutrinária, tampouco uma ordem geral que muda o entendimento de toda uma época. A Igreja sempre soube a diferença e nós precisamos reconhecê-la também.

O que muitos reformadores usaram como um argumento posterior é que o abuso era o modus operandi da Igreja há séculos. Antes de tudo, é necessário entender que a ‘venda de indulgências’ é um conceito mal entendido. Se por venda entendemos o pedido de contribuição financeira para obras importantes, quando se pede ao povo de Deus para que se faça um sacrifício pessoal como a esmola da viúva (Mc 12,41-44; Lc 21,1-4), não há absolutamente nada errado com isso. Pelo contrário! É um ato de participação no sacrifício salvífico que a Igreja autoriza que seja também levado em consideração pela limpeza da punição temporal.

Por outro lado, se por venda entendermos a exploração da devoção do povo por obras inúteis; para proveito pessoal de sacerdotes e bispos locais; pelo simples demonstrar de poder e abuso de fé; nesse caso, a “venda de indulgências” seria mesmo abuso e pecado grave cometido sob a falsa impressão de ser uma demanda da Igreja. Um autor certa vez disse: “o que mais afasta as pessoas da Igreja são os cristãos”. O mau exemplo é certamente o grande problema para se trazer mais almas a Cristo, mas veja que mesmo nessa colocação há a diferenciação entre a Igreja e seus membros. Da mesma forma, os erros e possíveis abusos pontuais sobre as indulgências não são “a Igreja”.

De qualquer forma, sabemos perfeitamente que o que provocou a ira de reformadores como Lutero foi um excesso de zelo e uma compreensão equivocada que misturava as duas hipóteses. Temos muitos exemplos de como as indulgências foram também uma força benigna nos séculos anteriores. Não só pelas bênçãos em si, mas pelo fator social. Examinaremos as indulgências como fator social e impulsionador de muitas boas obras na Idade Média no próximo artigo.

Por hora, que essa pequena reflexão sobre as indulgências para vivos e mortos e o purgatório seja útil para o crescimento do leitor na fé. Que saibamos que nossos pecados deixam uma forte marca em nossas vidas. Mesmo com o perdão da punição eterna, ainda é preciso unir nossas vidas ao sacrifício pascal em penitência e uma vontade clara de não voltar a pecar, para que a punição temporal, a marca do pecado em nossas relações na terra, seja igualmente limpa.

Não ignoremos, também, o poder da infinita misericórdia de Deus que, através da Sua Igreja, pode abrir o tesouro dos méritos de Cristo e nos conceder indulgências para melhor limpar a marca temporal dos vivos e os mortos, não importa quantos abusos um dia supostamente foram cometidos. Para os vivos, a fé para uma vida melhor e um caminho mais suave até os braços do Senhor; para os mortos no purgatório, cuja salvação necessariamente já foi definida por Deus, menos tempo no processo de limpeza dos rastros do pecado.

As indulgências são um tesouro que, infelizmente, hoje parece enterrado sob uma avalanche de má compreensão e acusações maliciosas que misturam o mal de alguns homens com as bênçãos que só a Igreja Católica pode distribuir. Que esta reflexão seja uma ajuda para que mais fiéis peçam por esse inifnito tesouro de amor.

Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,

um Papista

 

– Continua em um próximo artigo –

One thought on “Indulgências, o tesouro enterrado

  1. Ricardo Rocha

    O texto ficou muito bom! Eu só acho que para ajudar na nossa compreensão e na dos irmãos protestantes que lerem, poderia citar exemplos específicos que estejam registrados.
    Aguardo a continuação.

    Salve Maria.

    Reply

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *