Um dos pilares da revolução começada por Martinho Lutero foi a sua redefinição da doutrina da Justificação. Lutero interpretava os escritos de São Paulo projetando a si mesmo no texto bíblico. Para ele, São Paulo era um homem atormentado por seus pecados e sua incapacidade de se sentir salvo.
Dessa forma, disse Lutero, São Paulo teria chegado à conclusão de que um homem só pode ser salvo pela sua fé. De fato, na fé de que ele tem fé. Se ele duvidasse que tem fé para ser salvo, não seria. Essa idéia de “fé na sua fé para a salvação” se tornou a doutrina conhecida como “Sola Fide”, ou “somente pela fé”, excluindo o valor das obras da fé.
Para Lutero, São Paulo se viu confortado apenas por esse pensamento e, uma vez alcançada essa conclusão, o apóstolo queria dizer (Rm 8,35-37) que um homem poderia até mesmo matar ou cometer adultério 1000 vezes em um dia (palavras de Lutero) que não perderia a sua salvação (Carta 99).
Para embasar sua doutrina, Lutero examinava o que São Paulo dizia sobre “obras da lei” em ‘Rm 3,28’ e passagens semelhantes como ‘Gl 2,16’; ‘Gl 3,11’; ‘Rm 9,32’ etc. Lutero interpretava a expressão “obras da lei” como qualquer ato humano, mesmo obras de caridade agradáveis a Deus. Dessa maneira, um homem seria justificado pela fé e não pelas “obras”.
A doutrina católica, começando na interpretação bíblica dos Pais da Igreja e culminando em Santo Tomás de Aquino, e sempre atenta ao contexto bíblico e não a voluntarismo exegético, interpretou “obras da lei” como as cerimônias e rituais do Antigo Testamento, como as cerimônias de purificação presentes, principalmente, nos livros de Moisés, como o Levítico. Rituais esses que a Igreja via como cumpridos e elevados em Cristo, ou seja, superados pela Cruz e os Sacramentos como parte da vida da fé.
Entre todos os debates que se formaram em volta da doutrina, um deles é o da exegese bíblica. Um impasse se formou quando o critério sugerido para “desempatar” a questão seria provar que o uso da expressão “obras da lei”, na época de São Paulo, se referia aos rituais de purificação ou a qualquer obra.
É comum que esse tipo de dúvida linguística surja. A linguagem bíblica em nada difere do resto em termos de riqueza de expressões de sua época que precisam ser contextualizadas para o nosso melhor entendimento. O problema é que não havia documento da época que usasse a mesma expressão “obras da lei”. O impasse foi criado.
Eis que a descoberta dos Documentos do Mar Morto, especificamente a comunidade de Qumran (alguns talvez não sejam da mesma comunidade), jogaram luz sobre a questão. Parece estranho que logo essa questão seja iluminada pelos documentos, porém, ela é profundamente ajudada pela descoberta.
Os documentos de Qumran foram nomeados a partir das 11 cavernas em que foram encontrados. Se foi na primeira caverna, o documento se chamará ‘1Q’ e alguma sigla como complemento, como ‘1QIsa’, o famoso “Grande Pergaminho de Isaías”, encontrado na ‘Caverna 1’.
Na quarta caverna, foi encontrado um documento que a maioria dos pesquisadores considera que foi escrito pela tribo dos Essênios. Para além de lendas e suposições, sabemos que os Essênios eram uma tribo de tradicionalistas que viam as tribos dos Fariseus e Saduceus como descumpridoras das leis de Moisés.
Pelo que parece, após uma disputa mais séria com os Saduceus, a tribo “biônica” do império romano que mandava no Templo (ou seja, que tinha o poder romano por trás para manter a fé aos seus moldes), os Essênios teriam iniciado uma comunidade no deserto e se recusavam a viver entre os outros em Jerusalém. De fato, seria um tipo de comunidade pré-monástica, toda composta por homens que aceitavam a sua doutrina e se mudavam para a comunidade no deserto.
Um dos seus documentos foi encontrado na ‘Caverna 4’ de Qumran. Era uma carta aos Fariseus descrevendo os seus erros doutrinais e como elas deviam ser tratadas de acordo com a interpretação deles das leis mosaicas, especialmente as descritas no livro do Levítico.
Esse documento foi classificado como 4QMMT e também é chamado de “Carta Haláquica”, por lidar com os preceitos religiosos, a “Halakhah” (Halacá), a lei judaica. É uma descrição das leis mosaicas em contraste mais direto com a interpretação farisaica.
O que nos importa neste momento é que a 4QMMT contém a única menção à expressão “obras da lei” da época do Segundo Templo, especificamente entre o tempo da revolta dos Macabeus e o ministério de Cristo. Nessa obra, a expressão “obras da lei” se refere exatamente ao que a Igreja Católica sempre afirmou: aos preceitos e rituais descritos nas leis de Moisés que foram superados na Nova Aliança.
Se a evidência textual foi cobrada como prova da intenção paulina e sua descrição de “obras da lei”, então, os pergaminhos do Mar Morto nos trazem a única evidência que temos e ela confirma a doutrina católica.
Se aceitarmos o desafio e expandirmos isso como prova, em contexto, as cartas paulinas falam da fé em Cristo, e não o cumprimento de preceitos mosaicos já superados, como caminho para a salvação. Não seremos salvos pelo legalismo e cumprimento ritual, muito menos de prescrições superadas. Ficam os Mandamentos, agora personificados e elevados em Cristo, saem as prescrições de pureza e cerimônias rituais e sinais da Antiga Aliança, superados pelos Sacramentos e sinais da Nova Aliança.
Isso NÃO exclui as boas obras, as obras que são a fé em ação. A fé em Cristo nos transmite a Sua Graça. Seu amor age em nós para que realizemos obras de amor, o único sinal visível da fé em Cristo, ou seja, parte visível da nossa salvação.
São Tiago trataria dessa questão das boas obras, não das “obras da lei” e a disputa sobre os antigos rituais. Ele é claro em dizer que NÃO somos justificados somente pela fé, mas pelas obras (Tg 2,24). Aliás, a ÚNICA passagem na Bíblia em que a expressão “somente pela fé” aparece e é “NÃO somente pela fé”.
Por fim, Lutero estava redondamente errado em sua interpretação sobre o efeito do pecado em nossas vidas em ‘Rm 8,35-37’. Como eu disse antes, Lutero lia a descrição de São Paulo e achava que o apóstolo queria dizer que nada poderia nos separar de Cristo se tivermos certeza da nossa fé.
São Paulo não fala de pecados, mas de sofrimento. Ele cita “angústia, tribulação, perseguição, fome, nudez, perigo, a espada”. Ele não se refere ao que fazemos, mas ao que somos submetidos. Nada dessas coisas pode nos separar do amor de Cristo. Pelo contrário! O sofrimento nos conforma à imagem do Cristo na Cruz. Em tudo isso nós somos mais que conquistadores! (Rm 8,35-37).
Nossos pecados, porém, nos separam do amor de Cristo e precisam ser limpos. Precisamos da fé em Cristo para que, recebendo a Sua Graça, Ele nos ajude a fazer obras de amor que sejam a fé viva que nos justifica e avança em nosso caminho para o Reino dos Céus.
Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,
um Papista
Muito bom seus esclarecimentos e sempre aprendendo com suas publicações.
Gosto quando leio sobre os pergaminhos do Mar Morto, de Qunran, e como são importantes.
Obrigada professor Mateus , por mais este ensinamento.
Eu que agradeço. Fique com Deus!
Prezado Mateus,
Muito bom o texto.
A propósito, o curso Caminhando pela Bíblia acabou?
Abraços
André Falquer
Oi, André! Tudo bem? A Paz de Cristo.
Muito obrigado! O projeto “Caminhando pela Bíblia” NÃO acabou. Eu só tive muita dificuldade para gravar e editar durante a pandemia por questõe de “revezamento de computador”. 🙂
Em muito breve, ele voltará firme e forte. Eu lamento pela espera. Toda semana eu acho que vou conseguir retornar e, com isso, nem avisei. Mea Culpa!
Fique com Deus!