O Evangelho segundo São João é muito diferente dos chamados “Evangelhos Sinóticos”. Por um lado, toda a narrativa de São João é complementar aos outros em sentido mais abrangente. Não apenas os “detalhes” que discutimos nos outros artigos, pequenas diferenças que enriquecem a narrativa quando vistos unidos, mas por acrescentar fatos e narrativas novas que, muitas vezes, complementam as narrativas dos outros evangelistas.
Um dos exemplos mais facilmente reconhecido é que São João não repete a narrativa da Instituição da Eucaristia, já exaustivamente detalhada nos outros Evangelhos, e provavelmente percebida pelo apóstolo como já completa e perfeita nos “sinóticos”.
Se a Instituição da Eucaristia é, obviamente, o que de mais importante aconteceu naquele dia, no “andar de cima” da casa (provavelmente a casa da família do Evangelista São Marcos, mas isso não vem ao caso agora), São João nos dá o “outro acontecimento” daquele momento, a cerimônia do Lava-Pés.
É impossível saber por que os outros evangelistas não narram essa cerimônia mas, como observado, é possível que eles tenham preferido focar inteiramente na narrativa eucarística, o que é perfeitamente entendível. Com isso já narrado à perfeição e “sinfonicamente” pelos outros evangelistas, São João acrescenta o Lava-Pés. Uma cerimônia que, de fato, é muito mais que mero detalhe, ritual de hospitalidade ou mesmo ato de humildade.
O ritual do Lava-Pés é outro cumprimento da transmissão da autoridade sacerdotal. Isso só pode ser entendido observando as leis mosaicas, especialmente as leis sobre o Dia da Expiação, o Yom Kippur, descritas no livro do Levítico (Lv 16).
Em ‘Lv 16,23-24’, Aarão (o Sumo Sacerdote) deveria se despir, lavar, se vestir e oferecer sacrifício de expiação. Da mesma maneira, Jesus se despe (Jo 13,4); lava os pés dos discípulos (v.5); se veste (v.12) e logo se oferecerá em Sacrifício perfeito pelos nossos pecados.
Note que o livro do Êxodo diz que o sacerdote deveria lavar os pés antes de qualquer ato no Santuário (Ex 30,19-21). Jesus está, de fato, fazendo reconhecer aos apóstolos que eles são os sacerdotes da Nova Aliança e que devem estar limpos para oferecer o Seu Corpo em Sacrifício perpétuo dali para frente. Sacrifício esse que logo aconteceria e “de uma vez por todas” no sentido de ali e para sempre, não de ali e acabou.
E quanto à fala de São Pedro sobre Jesus não lavar os seus pés? É um momento tocante do reconhecimento do Sumo Sacerdote Eterno transmitindo a Sua Bênção. Um momento em que São Pedro reconhece a sua pequenez. Porém, o Senhor lembra o primeiro papa o que está acontecendo em termos do cumprimento messiânico, ou seja, Jesus diz algo que se refere ao Antigo Testamento se cumprindo, o que faria São Pedro perceber a importância do ato.
No caso, Jesus diz: “Se eu não te lavar, você não terá PARTE em mim” (v.8). A tradução aqui nem sempre ajuda. A expressão usada é “méros” (μέρος) que vem de um arcaísmo “meíromai” (μείρομαι) que ajuda a entender a expressão melhor. Ela significa “porção”, “lote” etc. Ou seja, uma “parte” no sentido literal de “uma porção”.
Por que Jesus usa essa expressão nesse momento? Porque eles reconheceriam o caráter sacerdotal sendo transmitido. Essa é a expressão usada na Septuaginta (o AT em Grego) para descrever a “porção” que os levitas (a casta sacerdotal) ficaria na divisão de terras. Por exemplo, no livro dos Números (Nm 18,20) e uma variação da expressão “merís” (μερίς).
E qual seria a “porção” dos levitas? Na terra, nenhuma! Atenção, pois isso é fundamental para se entender o diálogo do Senhor com São Pedro: os levitas foram a única tribo a não receber terra. Por quê? Porque, diz o Senhor: “Eu Sou a sua porção!” (Nm 18,20; Dt 10,9 etc).
Ao ver o que São Pedro disse, mesmo sendo um ato de humildade, o Senhor diz: “se eu não te lavar, você não terá PORÇÃO em mim”. O apóstolo reconheceria isso na hora. Sua resposta: “Senhor, não apenas os meus pés, mas também minhas mãos e minha cabeça”. Porque, uma vez entendido o que estava sendo transmitido, cumprindo e elevando o que foi dado aos levitas (a vivência sacerdotal com o Senhor), São Pedro pede para não ter qualquer porção no mundo e ser todo do Senhor.
O comentário que se segue do Senhor é o complemento ao novo status sacerdotal na Nova ALiança. Ao contrário dos antigos rituais, no entanto, aquele que foi batizado e recebeu o Sacramento da Ordem, precisaria cumprir o Lava-Pés, mas já fazia parte do Senhor e não precisaria mais cumprir um monte de rituais de purificação.
Enfim, São João não apenas completa a Instituição da Eucaristia, mas demonstra a instituição do sacerdócio pleno e sua transmissão e os rituais que permanecem na Nova Aliança, agora cumpridos e elevados. Quem não consegue enxergar o cumprimento messiânico terá dificuldades em demonstrar o sacerdócio na Nova Aliança. É importante que os Católicos saibam que a Bíblia nos mostra o sacerdócio. Não inventado, mas um que é cumprido e elevado na Nova Aliança em Cristo.
Esse é um exemplo do caráter sinfônico dos Evangelhos através dos olhos de São João. Cada Evangelista traz “detalhes” que, unidos, nos dão a mais bela visão da Revelação bíblica do que qualquer um poderia descrever sozinho.
São João, Apóstolo e Evangelista, rogai por nós e pelos sacerdotes do Senhor.
Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,
um Papista