A Liturgia do terceiro domingo da Quaresma é carregada de significado, como sempre. Uma frase do Papa Bento XVI sobre os 10 Mandamentos nunca me sai da cabeça: “a fé cristã não deseja sufocar o amor, mas fazer dele saudável, forte e verdadeiramente livre: esse é perfeito significado dos Mandamentos, que não são uma série de ‘nãos’, mas um grande ‘sim’ ao amor e à vida” (do livro “An Invitation to Faith”, tradução do livro “L’Essence de la foi”, coletânea de Jean-Michel Coulet. A tradução do trecho é minha).
Essa reflexão do Papa Emérito nos ajuda a entender o papel da primeira leitura na Liturgia de hoje. Os Mandamentos de Deus são o caminho para a liberdade plena, vivida apenas se nós sabemos quais são os limites. Como eu sempre gosto de ilustrar em minhas aulas, são como as muretas de proteção (mesmo no Brasil são também conhecidas pelo inglês “guard rail”) em estradas. Elas não estão lá para limitar nossa liberdade, mas para que saibamos que, passando daquele ponto, nós corremos risco de vida.
Assim são os Mandamentos para a alma. Como eu disse na reflexão curta sobre a Liturgia, vale notar que, ainda em ‘Ex 20’, os Mandamentos não vêm acompanhados das centenas de pequenas prescrições legais que seriam “o jugo” sobre a vida do homem. Mesmo tendo uma razão de ser, uma pedagogia divina a filhos que foram muito além do “guard rail” protetor dos Mandamentos, eles eram limitantes. Os Mandamentos, não. Viver nos limites do Mandamento, assim como dirigir pelas montanhas sem ultrapassar as muretas, significa plena liberdade. O contrário é o abismo.
Dessa maneira, Deus nos mostra que a verdadeira liberdade vem da perfeita ordenação de tudo a Ele que é perfeitamente bom, perfeitamente puro como é o amor verdadeiro que é a Sua essência (1Jo 4,8). A vivência cristã, então, é a vivência dos Mandamentos, a plena liberdade para viver o amor de Deus. Tudo bem protegido, o Pai que nos ama deixou as barreiras de proteção bem iluminadas para nos guiar.
Tendo passado dos limites; tendo percebido que não nos bastam “guard rails” bem iluminados; é preciso a humildade para pedir socorro ao Pai. É o que cantamos no Salmo, que tem como resposta as palavras de São Pedro depois do discurso do Pão da Vida (Jo 6,68c). O Senhor tem palavras de vida eterna, mas nós não ouvimos. Sabemos repetir que as leis do Senhor são perfeitas e nelas encontraremos vida, mas não agimos como quem sabe disso de verdade.
Deus, em Sua misericórdia, erguerá um farol para nos guiar pelas trevas. Essa é a mensagem da segunda leitura, quando São Paulo fala daquilo que define a sua vida: o caminho cruciforme da vida. O farol da nossa vida é o Cristo erguido no madeiro, escândalo para os judeus porque não é fácil entender como exatamente aquilo que era sinal de maldição (Dt 21,23) seria sinal de salvação.
Jesus jogou sobre Ele as maldições da Aliança ao ser pendurado na Cruz, mas mesmo São Paulo só compreendeu isso (deixando de considerar blasfêmia adorar um homem que foi pendurado no madeiro, como prescrevia a lei) com um encontro com o Senhor Vivo. A lei não estava errada! Era mesmo sinal de maldição, mas o Senhor assim o prescreveu para que nEle nossos pecados pudessem ser pregados no madeiro.
Insensatez para os pagãos que, vivendo sob o pensamento helenista, não aceitavam um Deus que se fez homem para morrer por nós. Mas a insensatez de Deus é mais sábia que os homens, diz o apóstolo. E é nessa fraqueza que Deus prova a Sua força, Seu poder (dúnamis) definitivo que vence até a morte, a filha do pecado.
São Paulo precisou, como vimos, de um encontro com o Senhor Vivo. Esse é o encontro a que somos chamados. Para isso, ensina o Evangelho de hoje, é preciso antes “limpar a casa”.
Neste Terceiro Domingo da Quaresma, a Santa Mãe Igreja deseja que nós reflitamos sobre quanto estamos nos esforçando para limpar nossas almas, o Templo do Senhor. Mesmo nossas penitências, se não tomarmos cuidado, podem terminar como as prescrições legais que se tornaram “o jugo”: legalismo que não limpa nada! A menos que saibamos por que estamos fazendo penitência; a menos que tudo seja devidamente ordenado ao Senhor em oração e boas obras (o chamado à oração e à esmola que complementam a prática da penitência, focada no jejum), tudo será mero legalismo. Ou pior! Será feito para que fiquemos orgulhosos de nós mesmos e apontemos o dedo ao irmão que, talvez, não faça tantas penitências, mas faça melhor e seja mais agradável a Deus.
Essa é a mensagem do Evangelho de hoje, um chamado à purificação. O Templo era, literalmente, a “habitação do Senhor”. A Arca da Aliança, colocada no Santo dos Santos, era coberta e protegida pela Shekinah, a nuvem de Glória do Senhor. No segundo templo, no entanto, não havia mais arca, não havia mais nuvem de Glória. Era um sinal de que Deus estava “transferindo” a Sua morada. De fato, Ele deixaria claro que o tempo para templos e sacrifícios animais estava no fim e todos voltariam a participar da Sua vida como templos vivos do Senhor.
Ainda que a reunião comunitária para “partir o pão” e encontrar diretamente o Senhor na Igreja seja parte da nossa vida, não há mais apenas um templo, e nosso sacerdócio de fé em nossas casas também foi restaurado e faz parte desse belo conjunto de bênçãos.
Nos três outros Evangelhos, a “limpeza do Templo” ocorre no final do ministério de Cristo, pouco antes da paixão. A Liturgia de hoje destaca a versão de São João, que ocorre logo no início do Ministério Sagrado do Senhor. Por quê?
São João é o único evangelista que narra mais de uma Páscoa no Evangelho. Aliás, é só por isso que sabemos que o ministério do Senhor durou três anos. Sem isso, seguindo a narrativa dos outros Evangelhos, poderíamos acreditar que tudo se passou em um (intenso) ano. Jesus vai quatro vezes até Jerusalém no Evangelho segundo São João (que, ao contrário dos outros, narra muito mais o tempo do Senhor em Jerusalém). Todas para cumprir os preceitos de festas litúrgicas. Logo na primeira vez, segundo São João, o Senhor expulsa os mercadores.
Durante a Quaresma, parece especialmente importante refletir sobre começar a limpeza das nossas almas desde cedo. Não podemos esperar até a Páscoa para começar a limpeza. Tudo o que fazemos agora tem que ser bem ordenado e ajudar na transformação efetiva que buscamos ao nos aproximar do Cristo Crucificado. Fundamentalmente, esse é o motivo para a narrativa tão cedo no Evangelho segundo São João. E por que essa versão é escolhida na Liturgia.
Na verdade, o grande choque para quem assistia à cena, ao contrário do que se pensa, não é porque aquilo tudo era errado. De fato, historicamente, essa era uma solução aceita para um problema prático: como toda Israel poderia ir ao Templo e oferecer sacrifícios. Não seria fácil você viajar por meses levando animais para o sacrifício. Fora o risco deles morrerem na viagem ou você ser roubado.
Também havia um problema com o dinheiro. Como mostrou o Senhor, as moedas do império carregavam a imagem de César, um falso deus. Exatamente nos Mandamentos (Ex 20,4), Deus ordena que não sejam feitas imagens de falsos deuses. Então, entrar com moedas estrangeiras era proibido. É por isso que existiam os cambistas no Templo. Para que os filhos de Israel pudessem trocar seu dinheiro por moedas aceitas no Templo.
Então, apesar da visão anti-mercantilista que assola muitas interpretações, nada disso era realmente errado. Claro, há que se levar em conta a possível corrupção que tomava conta dos negócios do Templo, mas o fato é que o “comércio” ali não era errado. Pelo contrário! Era uma ajuda ao povo que precisava trocar seu dinheiro ou comprar animais para o sacrifício que era uma obrigação. Então, qual é o problema? O problema é exatamente que Deus não estava mais lá! O momento da Antiga Aliança passava e o povo não via. A Nova Aliança estava sendo forjada em Cristo, mas o povo não via.
São João, de fato, acrescenta um “detalhe” que explica tudo. Embora isso passe despercebido, é a chave para se entender esse momento. O Evangelista fala em “não farão um mercado da Casa do Meu Pai” (Jo 2,16). A expressão “mercado” (empórion ἐμπόριον, de onde vem a palavra “empório”) remete a uma profecia de Zacarias.
Zacarias foi o penúltimo profeta do Antigo Testamento. Nesse período, os profetas (Ageu, Zacarias e Malaquias) trazem mensagens sobre o Templo e a vinda do Messias, a redenção de Israel. No último verso da profecia de Zacarias (Zc 14,21), ele fala: “E não haverá mais mercador na Casa do Senhor dos Exércitos naquele dia”. Essa é uma profecia sobre o cumprimento messiânico e sua relação direta com a Jerusalém Celestial.
O Templo, segundo o profeta, seria purificado no “dia do Senhor”. E purificado de tal maneira que não mais seriam necessários os sacrifícios que antes eram não apenas bons, mas obrigatórios segundo a vontade de Deus. Dessa maneira, São João nos mostra que o Senhor está afastando os mercadores exatamente porque o dia chegou! A hora é agora! Não podemos deixar para amanhã. Nossa preparação quaresmal é mais do que uma série de prescrições. Deve ser uma vivência real e que nos prepara para o “dia do Senhor”.
São João ainda aponta para isso em mais um jogo de palavras que é uma alusão ao cumprimento definitivo na Cruz. São João é o único que interpreta essa passagem à luz do Salmo 69(68). Só que ele faz uma modificação. O Salmo fala que “o zelo pela Sua Casa me consumiu” (Sl 69,9 ou 68,10). São João modifica para “o zelo pela Sua Casa me consumirá” (Jo 2,17). Ao modificar a linguagem para o futuro, São João não está deturpando o texto sagrado, mas interpretando-o teologicamente. Ele quer nos mostrar que esse ato é algo que não termina ali. Já é parte daquilo que se cumpriria na Cruz.
É por total amor ao Pai que Jesus “consumiria a si mesmo” na Cruz! O começo da limpeza do templo se cumpre e eleva na Cruz. É por isso, meus irmãos, que a nossa “purificação” quaresmal é mais do que mero cumprimento de preceitos. Sempre haverá alguém para regular as suas penitências. Esses são os ladrões que transformam a Casa de Deus em um covil. Seja lá quais foram as nossas penitências; se são muitas ou poucas; se são mais leves do que a do fariseu ao nosso lado ou não; o que importa é que elas sejam feitas devidamente ordenadas a Deus.
Vivamos os Mandamentos que ordenam as nossas vidas. Vivamos intensamente o amor que é a oportunidade de fazer penitências na Quaresma. Elas são o caminho para a Cruz e Ressurreição da Páscoa eterna do Senhor. Elas são nossa “memória” da purificação necessária para que nos tornemos “habitação” real do Senhor, templos do Espírito Santo, santos, homens de boas obras e profundo amor por Deus e Sua Igreja.
Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,
um Papista