A idéia de que Jesus e os apóstolos falavam apenas (ênfase no apenas, por favor) Aramaico é puramente culpa de romantismo.
A busca pelo “Jesus Hebraico” teve pontos positivos e negativos:
- como positivo, avançou enormemente nosso entendimento do tempo e cultura em que o Verbo se fez carne, com o quê Jesus dialogava e como vivia (sua prática litúrgica, seus adversários, seus amigos e suas crenças etc). O estudo do “Judaísmo do Segundo Templo” não pode ser minimizado! É, possivelmente, uma das grandes conquistas do estudo bíblico do último século e algo a ser aprofundado cada vez mais. Isso nos possibilitou não apenas voltar ao entendimento mais claro da era patrística, como corrigir o que eu falo a seguir.
- como negativo, uma versão um tanto purista, extremamente romantizada, que buscava a velha “pureza do bom selvagem” fingindo buscar o “Jesus Hebraico” quando, na verdade, buscava jogar uma visão antropológica moderna sobre uma situação bem mais complexa. Sob essa visão, qualquer influência grega ou latina seria uma “invasão cultural” e tinha que ser separada.
A realidade, porém, é bem mais complexa e não se importa com os nossos nada velados anseios, expectativas, política ou preconceitos.
É praticamente impossível separar a cultura grega do mundo conhecido. Grego era a língua franca. Ela estava em nomes, símbolos e havia penetrado profundamente nas línguas faladas na época. Inclusive o Aramaico!
O nome do grande conselho religioso de Jerusalém, uma “corte suprema” local, o “Sinédrio”, carregava esse nome grego. Não há evidências de um outro nome. Essa é uma evidência incrível do uso do Grego como parte dos dialetos locais.
Partículas grega como “gar” (que significa “para”) eram usadas em: Copta (língua egípcia antiga), Aramaico, Siríaco etc. Usadas comumente na época como partícula de ligação. Sem distinção! Nós temos evidências de que, no século IV, Copta ainda carregava mais de 10% do seu vocabulário vindo do Grego.
“Nomos” (grego para “lei”) é visto em Aramaico, Árabe, Copta, Siríaco etc.
Saindo da região próxima de Jerusalém e subindo para a terra de Jesus em Nazaré, a região provavelmente falava ainda mais Grego, senão quase tudo em Grego.
É improvável (eu diria impossível) que alguém que trabalhasse com carpintaria, vindo de Nazaré na Galiléia, que viajava por toda a Palestina da época, falasse apenas Aramaico. Eu diria que Jesus – e a maioria dos apóstolos – falava pelo menos 3 línguas (Aramaico, Hebraico e Grego), e conhecia expressões e nomes de mais algumas (Latim, inclusive) suficientemente para “se virar” nessas línguas.
Nomes: nomes gregos estavam em todos os estratos da sociedade.
- Nicodemos (São Nicodemos) é o nome grego de um membro do poderoso Sinédrio (possivelmente uma versão de um nome Hebraico, ‘Naqdimon’, mas não apenas um “apelido”, como alguns dizem).
- Bartimeu é o Aramaico “bar” (filho de) com um nome grego, “Timaios”.
- A lista dos apóstolos em ‘Mt 10,2-4’ é toda de nomes gregos ou de nomes “helenizados”, versões já comuns em Grego de nomes antes em Hebraico ou Aramaico.
- De fato, entre a família próxima de Jesus (entre os pais e os primos ou demais agregados chamados de “irmãos” na época), o único nome totalmente Hebraico é o de José, um fato que, por si sí, é rico em possibilidades, mas não para especulação agora. Mesmo assim, São Marcos heleniza em ‘Mc 6,13’ para ‘Joses’.
O Sermão da Montanha talvez tenha sido proferido em Grego! Existem alguns motivos para se desconfiar disso:
- um pouco antes (Mt 4,25), vemos a lista de pessoas que estavam seguindo Jesus: habitantes da Galiléia, da Decápole (!), de Jerusalém etc. A Decápole era um conjunto de dez cidades helenistas. É possível imaginar que Grego fosse a língua escolhida para o sermão por ser a língua entendida por todos os presentes.
- o Sermão da Montanha é recheado de aliterações no original, em Grego. Bem-aventurados os:
— com “p” (π): pobres (ptochós πτωχός) [sem contar “de espírito”, pneuma, que não está incluído na versão Lucana, mas é uma bela aliteração em Mateus: ptochós pneuma], enlutados (penthéo πενθέω), humildes (praús πραΰ́ς), famintos (peináo πεινάω)
— com “k” (κ): puro (katarós καθαρός) de coração (kardía καρδία).
— com “d” (δ): sede (dipsáo διψάω) de justiça (dikaiosúne δικαιοσύνη).
E muitas outras aliterações que dão um sentido poético que me parece perdido em Aramaico ou Hebraico. Teria São Mateus capturado a essência do discurso e dado a ele um tom poético? Mesmo, talvez, tendo escrito antes em Hebraico? Seria coincidência? Ou seria um discurso em Grego intencionalmente formado com aliterações que, não apenas dariam um tom poético, mas facilitariam (e muito!) que ele fosse lembrado, como “mnemônicos”, técnicas de memória? As culturas da época usavam mnemônicos como poucos sabem usar. Agora, se esse tipo de mnemônico se perde em Aramaico ou Hebraico, e admitimos que era uma técnica comum na época, isso apenas reforça a idéia do sermão feito em Grego.
Papias de Alexandria dizia que São Mateus “juntou as falas de Jesus em Hebraico”. Isso não significa que Jesus falava em Hebraico, já que a língua do dia a dia seria Aramaico. Provavelmente, Papias queria dizer que São Mateus escreveu uma versão anterior em Hebraico (uma longa discussão). Ainda que fosse indicação de um ou de outro, isso não significaria que qualquer uma dessas línguas era a única falada ou escrita.
O pesquisador Stanley Porter destaca outras evidências para o uso corrente do Grego como segunda língua. Entre elas, o fato de que Jesus ter uma conversa profundamente teológica com os discípulos (Mt 16,13-20) em Cesareia de Filipe, uma região helenista (esse ponto não é muito forte porque Jesus poderia estar falando, naquele momento, apenas entre os apóstolos em Aramaico); Jesus responde diretamente a Pilatos (que dificilmente se rebaixaria a aprender o idioma local e provavelmente falava em Grego com o povo de Jerusalém ou com intérpretes); Jesus conversa com um centurião romano; Jesus conversa com a Siro-fenícia – ou gentia cananéia, dependendo da versão dos Evangelistas.
Não se pode diminuir o fato de que todo o Novo Testamento foi escrito em Grego. Para muitos, isso é apenas um “facilitador” para os gentios, mas não parece um argumento impenetrável. As evidências sugerem que o Grego era uma língua muito mais presente no dia a dia. Tanto em palavras como em conceitos. O que, de certa forma, minimiza a idéia de uma “helenização tardia” da teologia cristã sob influência de alguns Pais da Igreja. Que muitos deles foram responsáveis por um maior uso de conceitos filosóficos incomuns para a época e região de Cristo, sem dúvida. Talvez, porém, o abismo a ser atravessado na época de São Justino Mártir, um dos primeiros a usar certos conceitos aristotélicos para explicar teologia cristã, não fosse tão grande quanto se pensa.
Enfim, nada disso é definitivo. De qualquer maneira, eu acho que é possível provar que há uma pesada dose de romantismo na idéia de um “Jesus Hebraico” totalmente separado da “cultura helenista”. Não apenas historicamente, já que o judaísmo (termo sempre usado com cautela, já que não era uma coisa única) do tempo da conquista grega (tempo dos Macabeus) em diante já era fortemente helenizado, mas porque a cultura helenista havia dominado a língua e conceitos.
Se pudermos provar isso observando o NT, veremos que não havia abismo cultural tão grande como alguns pregam. Sem dúvida, Jesus e os apóstolos eram judeus observantes. Mas, o que isso significa em termos de mistura cultural ainda é um mistério. Algumas pistas, porém, eu creio que existem e apontam para uma cultura bastante heterogênea.
Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,
um Papista