O livro do Êxodo registra uma das mais antigas canções de Israel. Não apenas pela ordem bíblica, mas a linguagem usada é amplamente considerada um dos mais antigos registros da língua como usada no tempo de Moisés.
Com o passar do tempo e a adaptação da linguagem escrita, muitos registros foram adaptados e certas nuances que dariam pistas da antiguidade da linguagem se perderam ou foram nubladas. Alguns dos mais antigos e preservados exemplos são exatamente o “Cântico de Moisés e de Maria” em ‘Ex 15’; e a “Canção de Débora” no livro dos Juízes (Jz 5).
Mesmo alguns dos autores críticos, que dão atenção a todo tipo de teoria sobre “emendas”, “redação”, “fontes”, e que costumam acreditar que tudo é tardio, atestam a antiguidade da canção em questão. William Albright, um dos pesquisadores mais importantes do século XX, acreditava que era realmente do tempo de Moisés, atestando a linguagem para o século XIIIa.C. Outros autores cravam o século XII, e apenas os mais críticos tentam ver na linguagem um elemento tardio.
O fato é que a canção parece ser um registro bem preservado de uma linguagem muito antiga. Algo assim só costuma ser preservado em certos tipos de narrativa ou poesia. De fato, isso é tanto evidência para a antiguidade da canção como pode ser também do texto em prosa, já que a narrativa ter passado por modificações e “atualizações” mostra que ele não era considerado “folclórico” ou “mítico”, mas a descrição de eventos reais. Enquanto as canções são um registro poético preservado para uso musical e litúrgico.
Mesmo a descoberta dos artefatos em Ugarite, que abriu as portas para muito do nosso entendimento sobre a linguagem e a comparação de histórias etc, não ajuda nesse ponto. Embora exista ampla gama de similaridades no uso da linguagem, certos pontos são incompatíveis.
Robert Alter, um conhecido especialista na forma e linguagem da prosa e poesia semítica, nota que o tipo de história mítica Ugarítica que alguns desejam projetar na Bíblia não contém os elementos de ligação narrativos presentes na prosa histórica bíblica, como “então”, “entretanto”, “enquanto isso” etc. A adaptação dessas histórias para a prosa de Israel apresenta sérios problemas. A poesia, então, nem se fala. Especulação é tudo que se pode fazer, apesar de tantas afirmações “bombásticas” em contrário.
Outros elementos interessantes da canção é que a linguagem apresenta muitos elementos ‘metri causa’, expressões em formas que, aparentemente, estão linguisticamente fora de contexto, mas são claramente modificadas para servir a uma métrica. Embora, repito, seja impossível entender perfeitamente a intenção, essas coisas universais da poesia e canto estão presentes.
E a história comparativa? É verdade que muitos episódios similares foram registrados ao longo do tempo. Novamente, mesmo os autores mais críticos entendem que criar uma “tipologia” com certos eventos não os torna ficção. Por exemplo: várias histórias antigas contam que o “Mar da Panfília” se abriu diante de Alexandre Magno para que ele seguisse suas conquistas. Até Flávio Josefo reconta essa história para ilustrar o desejo divino pela destruição dos Persas.
Artapano de Alexandria, um historiador judeu helenista do Egito (Eusébio e Clemente de Alexandria preservaram parte da sua obra), descreve a travessia do Mar Vermelho como história, mas a caracteriza como um evento natural, graças ao “conhecimento superior de Moisés sobre as marés”. Algo que, francamente, soa menos “natural” que a narrativa bíblica.
O fato é que pouca gente na antiguidade desconsiderava a travessia do Mar Vermelho como história. O “quê” e o “como” é que variavam. Tudo isso combina com a antiguidade do chamado “Cântico de Moisés e de Maria”, entre tantos nomes. Por tudo isso, chamá-lo de “Canção da Vitória” é muito apropriado, já que há pouca dúvida sobre o evento histórico em si (ainda que você duvide de certos detalhes). Para o cristão não é difícil aceitar os milagres. O ato de desvendar história e registros poéticos é apenas um sabor a mais.
Dito isso, existem incontáveis maneiras de se dividir a poesia, já que nossa compreensão sobre a forma da poesia da época é limitada. Muitos especialistas divergem sobre a forma no original em Hebraico. Longe de tentar resolver esse mistério, eu prefiro ignorar no momento a visão “micro” dos versos, cadência etc, e dirigir o olhar para uma visão “marco”, uma visão geral sobre a estrutura da nossa divisão atual em 18 versículos bíblicos.
Desde a antiguidade se vê um formato litúrgico para a “Canção da Vitória”. A enorme quantidade de cláusulas paralelas (parte do paralelismo poético hebraico), e o sentido “antifonal” observado por alguns para certas passagens (como antífonas e respostas do coral), fez com que muitos autores vissem um arranjo já proposto no texto.
Fílon de Alexandria, ainda no primeiro século, imaginava um arranjo em que Moisés e os homens cantavam as antífonas como um coral, enquanto sua irmão Maria (Miriam) e as mulheres formavam outro coral para cantar as respostas. Os rabinos dos primeiros séculos depois de Cristo acreditavam que era apenas um coral formado pela assembléia que respondia a um cantor, Moisés.
Todas essas propostas são interessantes, mas como dividir os temas? Essa divisão textual é mais clara que a poética para a canção. Em termos de temas:
- Versos (Vs) 1-10: o triunfo de Deus sobre os inimigos
- Vs 11-13: cantam como Deus é incomparável
- Vs 14-16: o impacto do milagre sobre os povos ao redor
- Vs 17-18: um olhar para o futuro na Aliança Divina
Em termos poéticos, eu gosto da divisão simples, em 4 estrofes, do Prof. Walter Kaiser. A versão a seguir é levemente adaptada na linguagem litúrgica e minha preferência pela imagem de um cantor-sacerdote e a resposta de apenas um coral, mas todo crédito para a inspiração do modelo do Prof. Kaiser:
- Primeira Estrofe (Vs 1-5)
–Parte A: Antífona (“Eu Cantarei ao Senhor”)
–Partes B e C (Vs 2-5): Confissão de Fé e Narração - Segunda Estrofe (Vs 6-10)
— Parte A: Antífona (“Tua Mão Direita, Ó Senhor”)
— Partes B e C: Confissão de Fé e Narração (Vs 7-10)* - Terceira Estrofe (Vs 11-16a)
— Parte A: Antífona (“Quem é como tu, Ó Senhor?”)
— Partes B e C: Confissão de Fé e Narração (Vs 12-16)* - Quarta Estrofe (Vs 16b-18)
— Parte A: Antífona (“Até seu povo passar, Ó Senhor”)
— Partes B e C: Confissão de Fé e Narração (Vs 17-18)* - Kaiser nota um elemento de ‘similitude’ ao final de cada parte ‘C’ no centro da poesia: “como chumbo”, “como uma pedra”, outra possível marcação poética. Muitos comentaristas notam a repetição rápida do sentido verbal de “eu irei” no verso 9, como “eu irei perseguir; eu irei alcançar; eu irei repartir” dando um ritmo de ‘staccato’ no centro nervoso da poesia.
Enfim, a “Canção da Vitória” contém diversos elementos que refletem rica tipologia. Seu cumprimento pode ser observado em vários momentos da História da Salvação. Tanto parcialmente ainda no AT, como em sua plenitude no NT, no Novo e definitivo Êxodo em Cristo Jesus. É a isso que o Cristão deve olhar primeiramente quando lê, canta ou reza sobre o Cântico de Moisés. É um olhar para o Deus que cumpre Suas promessas e nos liberta através da Água da Vida que é a vida em Jesus Cristo e Sua Igreja.
Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,
um Papista
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