O Salmo 69(68 na listagem grega, indicado aqui pela última vez neste texto) é claramente importante na Bíblia, especialmente pelo seu uso no Novo Testamento. Por que tamanha importância para esse salmo no NT?
Para além da obviedade de que todos os livros bíblicos são importantes, assim como cada salmo, provérbio individualmente; é indispensável notar que alguns salmos receberam maior atenção no NT. Em primeiro lugar, pelo cumprimento messiânico, ou seja, tanto como Jesus usava determinadas passagens (e salmos) do AT para demonstrar que tudo nEle se cumpria, quanto como os apóstolos fariam isso ao descrever a vida e mensagem de Cristo, bem como as consequências para a vida da Igreja.
É nesse contexto que o Salmo 69 (para listagem de versos, eu não conto a superinscrição dos salmos) ganha óbvio destaque. O número de citações no NT fala por si só (detalhes em seguida):
- Jo 2,17 – São João vê a reação de Jesus aos vendilhões no Templo, ou seja, a “purificação do Templo” como uma demonstração do zelo do Senhor pela Casa do Pai e cumprimento do Salmo 69.
- Jo 15,25 – “me odiaram sem motivo” é citação de dois salmos, 35 e 69, mas mais direta ao Salmo 69.
- Mt 27,34 – Essa é uma discreta alusão que São Mateus faz ao Salmo 69, como veremos a seguir.
- At 1,20 – A maldição sobre a desolação da habitação dos maus (Sl 69,26) é aplicada ao traidor Judas.
- Rm 11,9-10; 15,3 – São Paulo cita 2 vezes o Salmo 69 na mesma carta para descrever a cegueira do povo e, quase ao final, em uma bela e importante explicação cristológica sobre a ‘Kenosis’, o esvaziar de Si mesmo que Nosso Senhor fez por nós, um paralelo ao Hino Cristológico da sua carta aos Filipenses (Fl 2,6-11).
- Ap 16,1; 3,5; 13,8; 17,8; 20,12; 21,27: embora as citações do Apocalipse não sejam diretas, dois temas presentes no Salmo 69 podem ser vistos. O primeiro é que a ira de Deus era “derramada” como as ‘bacias’ (ou cálices, taças) pelos anjos. O segundo tema é “ser retirado do livro da vida”, uma imagem muito repetida na visão de São João.
As citações e alusões, bem como temas importantes presentes no Salmo 69 e repetidos não deixam dúvida da sua importância no NT. De fato, apenas o Salmo 22(21) é mais citado no NT por ser quase um “roteiro” para a Paixão do Senhor. Em termos de citações em livros e momentos diferentes, o Salmo 69 é o mais repetido.
Por outro lado, no próprio Saltério (o livro dos Salmos) o Salmo 69 pode ser destacado. Um salmo longo, ele é um dos mais longos “salmos de súplica”. Ele é complexo e difícil de ser descrito com apenas uma classificação. Ele é tanto um ‘lamento’ quanto uma ‘súplica’; ele mistura maldições (salmos imprecatórios) e louvor, assim como veneração por Sião (Jerusalém), um tema importante para os salmos e tanto o AT e o NT em geral.
Em termos literários, o Salmo 69 faz parte do “Livro II” do Saltério (Sl 42-72). O fim desse ‘livro’ (uma divisão arbitrária do livros dos salmos em 5 partes) é composto por vários lamentos (Sl 69-71) que, de certa maneira, formam uma pequena unidade na forma de um trio de súplicas por livramento. 2 explicitamente de Davi e um atribuído a ele por suas várias conexões (Sl 71). Não à toa, o ‘livro II’ termina (Sl 72), então, com uma ode e um apelo pelo reino de Salomão. Embora a superinscrição seja traduzida como “Salmo de Salomão”, é claramente um “Salmo por Salomão”. Um salmo régio (real) de bênção ao reino do filho de Davi.
É nesse contexto que o Salmo ganha igual importância para o NT. As súplicas por ‘livramento’, a ‘bênção real’ e a transmissão da bênção são parte importante para a mensagem do Senhor e Sua Igreja nascente.
Curiosidades e comentários sobre algumas citações no NT:
- Os “títulos” ou “descrições” dos salmos recebem vários nomes. Para ser franco, nenhum deles é muito bom, especialmente em Português como adaptação de nomenclatura teológica que mais parece receituário médico. De qualquer jeito, o uso de ‘superinscrição’ é o mais comum para ajudar a quem vai se embrenhar na literatura bíblica.
Dito isso, a superinscrição do Salmo 69 é difícil de traduzir como o de tantos outros, já que muitos desses títulos usam expressões, nomes de objetos, tipos de música ou nomes de pessoas que se perderam com o tempo. Já não se sabe como traduzir algumas coisas (já não se sabia o que era para o judaísmo depois de Cristo, muito menos agora para traduzir), muito menos quem eram algumas das pessoas citadas.
No Salmo em questão, a superinscrição diz algo como “Ao líder. Com o arranjo de ‘Lírios’. De Davi”. Aqui começam as dificuldades. “Líder” poderia ser o “Maestro” do coral real. Poderia ser o “líder dos músicos” etc. “Lírios” talvez fosse uma melodia ou música conhecida, ou arranjo usado repetidamente para esse tipo de louvor. Alguns autores não traduzem a expressão e mantém uma transliteração como “de acordo com Shoshanim”, como se fosse uma anotação musical ou instrução de arranjo agora perdida para nós. Outros ainda traçam um paralelo com superinscrições dos salmos 45 e 60 e vêem uma ordem para “instrução” (educação) em forma de louvor. A idéia como um arranjo para uma melodia então conhecida, chamada “Lírios” é a mais conhecida e popular.
Vale notar que a versão grega talvez traga um reconhecimento de que é uma instrução sobre educação espiritual na forma de louvor, uma maneira de louvar a Deus e, com isso, mudar a si mesmo: “ἀλλοιωθησομένων” algo como “aqueles que são mudados” (no sentido de “aqueles que estão sendo bem-ordenados [a Deus]”, eu suponho). Eu acho que isso é uma adaptação, não bem uma tradução, mas é tão válida como hipótese (ou mais) do que qualquer outra. E teologicamente rica.
- A primeira citação de São Paulo ao Salmo 69 na Carta aos Romanos (Rm 11,9-10) é particularmente forte. Em sua análise da situação de Israel na Nova Aliança (Rm 9-11), São Paulo coloca em pratos limpos a idéia do que significaria “Israel” na esperada salvação como povo eleito. Para o apóstolo, que se apresenta como um judeu da tribo de Benjamin (Rm 11,1), a promessa não era como “eleição automática” de todo descendente de Israel. Por óbvio, a promessa de Deus era real, mas a “Israel” prometida à salvação seria o conjunto dos que aceitassem a Palavra de Deus e seu cumprimento. Aos que se viam escolhidos, mas sem aceitar a conclusão natural da Antiga Aliança na Nova, São Paulo compara às situações descritas no Salmo 69: suas mesas de festas se tornaram uma armadilha; seus olhos se cegaram para a verdade.
- Todos os Evangelhos destacam a passagem do oferecimento de ‘vinagre’ (vinho amargo) a Jesus na Cruz, uma citação de Sl 69,21, mas apenas São Mateus parece fazer uma alusão mais direta e curiosa. Em Hebraico, o verso seria algo como “puseram veneno na minha comida. Vinho amargo deram para a minha sede”. A expressão Hebraica é ‘rosh’. Literalmente, uma planta venenosa, veneno. A versão Grega, no entanto, traduziu por ‘xolé’ (χολή), perfeitamente atestado na antiguidade (nenhuma ambiguidade) como ‘fel’ ou ‘bile’, algo muito amargo.
É curioso que o Evangelho segundo São Mateus, o mais ‘hebraico’ dos relatos da Boa Nova, use uma mistura das traduções para o ‘vinagre misturado com fel’, por si só uma mistura das expressões. Por quê? Impossível dizer, mas eu acho que é justamente para destacar a alusão ao Salmo 69. Dois elementos, afinal, são melhores que um se você quer dizer ‘isso cumpre o que foi dito no Salmo 69’ apenas com uma imagem.
Conclusão:
A visão teológica de São João o permitiu ver a reação do Senhor à realidade do Templo como uma “purificação”. De fato, ele descreve com as palavras do Salmo 69 como cumprimento do zelo cantado por Davi. Esse ponto me lembrou o título dado ao salmo pelo alemão Hans-Joaquim Kraus. Ao contrário de muitos da sua geração, Kraus escapa de muitas armadilhas da visão crítica em seus escritos. Em seu comentário aos Salmos, ele chama o Salmo 69 de “O Sofrimento do Zeloso Servo de Deus”. Eu não consigo pensar em um título melhor.
Toda conclusão do ‘Livro II’ dos Salmos caminha para uma perspectiva de súplica e prefiguração do Servo Sofredor, tema esse que seria central à visão de Isaías sobre a vinda do Messias. Todo zelo descrito por Davi encontra seu ápice na purificação de Sião e na perfeição do reino centrado na vida em Deus, como visto no Salmo 72, o último desse livro. É difícil deixar de enxergar uma linha tão cristologicamente simbólica, já que a História da Salvação tem seu ápice na vinda de Cristo, Sua Paixão e a conclusão da história na Jerusalém Celestial, como visto na visão de São João no Apocalipse.
Dessa forma, o Salmo 69 não apenas reúne tantos elementos que resumem a história, como nos prepara para a conclusão da mesma na união com o Servo Sofredor.
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, o Servo Sofredor, e Sua Igreja, a Nova e Perfeita Jerusalém!
Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,
um Papista
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