Salmo 50, a Liturgia, e o sacrifício em seu devido lugar

By | 15 de julho de 2024

Eu já escrevi aqui (provavelmente várias vezes) o que eu sempre digo aos meus alunos: a Liturgia é o ‘habitat natural’ da Sagrada Escritura. A própria tradição prova que a Liturgia é tanto o consumo da Palavra ouvida como da Palavra Viva, o Verbo, duas partes da mesma participação na própria vida de Cristo ao participar do Seu Sacrifício (2Tm 2,11).

A Liturgia da segunda-feira da décima quinta semana do Tempo Comum, ciclo II, é especialmente clara nisso. A relação das leituras ensina o caminhar pela Revelação Bíblica. Note a centralidade do Salmo nisso. Mais do que uma ‘pausa’ para canto e louvor, o Salmo é tudo isso e muito mais. É também parte central do ensino através do louvor e da beleza.

Há uma clara progressão no entendimento através das leituras. Isaías (Is 1,10-17) transmite um oráculo de aparente condenação sobre os sacrifícios. Aparente porque tudo precisa ser colocado em seu devido contexto. De fato, essa é a razão do oráculo. O povo distorceu o significado do sacrifício e o legalismo tomou conta. Sacrifícios se tornaram meros preceitos a ser cumpridos, retirando do ato o seu devido significado na relação com o Senhor. Deus, afinal, não precisa dos sacrifícios oferecidos. Os sacrifícios, enfim, são para o nosso benefício em participação. Quando esquecemos isso, perdemos de vista a verdadeira natureza do Senhor.

Sem o devido contexto, o oráculo de Isaías parece dizer “sacrifício ou boas obras”. O Salmo provará que essa não é a questão proposta pelo profeta.

O Salmo 50(49) é muito curioso por vários motivos. É um “Salmo de Assaf”. Em geral, tais salmos são reconhecidos por seu caráter profético e estão reunidos em bloco próprio. Esse está aparentemente deslocado e sem o caráter profético. Será? Alguns autores enxergam na forma literária um julgamento. A condenação pela quebra da Aliança com foco exatamente na distorção do sacrifício. O tom certamente parece ser esse, mas há mais do que isso nele.

Um verso é fundamental para o contexto (podendo ser traduzido de várias maneiras aproximadas): “eu não os condeno pelos seus sacrifícios, que estão sempre diante de mim” (Sl 50,8). A cláusula “que estão sempre diante de mim” é uma referência ao sacrifício perpétuo prescrito pela lei (Lv 1 e 3 etc). Mais do que mero comentário, essa referência ajuda a entender por que os sacrifícios não são condenados em si mesmo e, mais importante, por que a participação sacrificial na Nova Aliança ainda é fundamental.

Se o Salmo 50 não é um julgamento, ele é mais uma tentativa de colocar tudo em seu devido lugar. Se o sacrifício não é condenado por si só, já que o próprio salmista afirma que eles são bons, a preocupação do salmista é demonstrar que a substância do sacrifício é mais importante que a forma. Não os sacrifícios animais, mas a participação na própria vida de Deus.

Curiosamente, esse salmo traz uma incrível coleção de nomenclaturas divinas em sequência rápida. “El” (forma curta), “Elohim” (forma completa), “Senhor” (YHWH), “Elyon” (‘Altíssimo’, um nome visto antes na sequência com Melquisedeque, em Gn 14, uma boa referência sobre o sacrifício), e “Eloah” (versão poética). A presença do Tetragramaton (YHWH) não deixa dúvida sobre ser o Senhor. O fato é que essa sequência quer nos dizer algo. Com o sacrifício em contexto, a sequência nos faz voltar (repetidamente) nosso olhar a Deus. Em outras palavras, somos poeticamente chamados a enxergar o sacrifício na relação com Deus.

O Evangelho de hoje arremata a questão. É uma das mais impressionantes ‘auto-identificações’ divinas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Tudo isso enquanto o Senhor segue o tema proposto: coloca tudo em seu devido lugar. E o lugar é na relação com Ele. É na perfeita relação com Cristo, Nossa Páscoa (1Cor 5,7), que encontramos o lugar para a vivência das boas obras. Em outras palavras, não é um ou outro, mas também não é um sem o outro.

É preciso viver o sacrifício pascal para viver corretamente as boas obras, mas também é preciso viver as obras de amor para viver perfeitamente o sacrifício pascal. Caso contrário, até nossa relação com o sacrifício será mero cumprimento de preceito. Ao contrário, se vivermos a caridade (o amor em ação), viveremos melhor o sacrifício. E somente vivendo o sacrifício é que tornamos bons atos mais do que ‘boas ações’ ou a caridade do mundo. Até mesmo gente contrária ao cristianismo pode fazer boas ações, mas apenas a vivência do sacrifício pascal pode tornar uma obra realmente boa ao ser testemunho da Cruz da salvação. Mais que uma ‘boa ação’, o testemunho mostra a misericórdia de Deus e conduz à salvação da alma, harmoniza o mundo a Deus, tem poder para reorganizar a comunidade, dá a chance de revelar ao mundo o seu verdadeiro Rei, Nosso Senhor Jesus Cristo.

Como o salmo prefigura, um sacrifício perpétuo é bom e necessário. Esse sacrifício se cumpre em Jesus Cristo. Através da Igreja Católica, nós podemos participar diariamente desse sacrifício salvífico. Nunca repetido por jamais ter fim. Participar dele é santificar nossas boas obras. Nossas boas obras são o sinal da nossa fé e de que entendemos o objetivo da participação no sacrifício.

“Reúna-se a mim esse povo consagrado que comigo forjou uma Aliança através do sacrifício” (Sl 50,5);

“Em verdade vos digo: quem, por ser meu discípulo, der apenas um copo de água fresca um desses pequeninos, não perderá a sua recompensa” (Mt 10,42)

Participemos da Eucaristia sabendo que estamos participando do Sacrifício Pascal (1Cor 10,16-17). Vivamos as boas obras para que tenhamos certeza de que estamos participando, não só ‘cumprindo tabela’. Mais importante: para que saibamos que, participando do Sacrifício, Deus participa das nossas ao se revelar ao próximo em obras de amor.

Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,

um Papista

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