Sermão da Planície x Sermão da Montanha: dois sermões, um só Evangelho

By | 11 de setembro de 2024

Se o Evangelho segundo São Mateus registra o Sermão da Montanha, a versão da Boa Nova segundo São Lucas registra o chamado ‘Sermão da Planície’. Qual a diferença?

Muitos autores, baseados numa interpretação por demais crítica, falam num mesmo sermão em duas versões. A diferença, segundo esses autores, seria que cada evangelista adapta o sermão para um público-alvo. Uma versão (de Mateus) para um leitor judeu-cristão, e outro (Lucas) para um leitor gentio que não entenderia o formato claramente refletindo o Antigo Testamento da versão de São Mateus.

Essa idéia, como muito da teoria crítica, pressupõe que nada nos Evangelhos é um registro histórico preciso. Tudo é recorte, adaptação, e ‘acréscimo’. Não é de se estranhar que essa visão, advinda de uma ‘hermenêutica de desconfiança e ceticismo’, tenha esvaziado a fé de tantos estudiosos. Se você acha que tudo é adaptação e acréscimo; se tudo é ‘inventado’ e adaptado ao gosto do freguês, não é de se estranhar que você pense que nada ali é ‘histórico’ e, por fim, real.

Não só não faz sentido em termos de evidências, como é falta de imaginação e lógica. Durante os 3 anos do Ministério Sagrado de Nosso Senhor Jesus Cristo, é mais que razoável presumir que Ele tenha feito vários sermões, discursos, pregações, reuniões para ensinar etc. Como é comum, muitos sermões podiam ser repetidos, adaptados ao ouvinte (não inventado posteriormente ao leitor desavisado), ou apenas Ele mantinha certos temas, desenvolvia outros, acrescentava ensinamentos etc. Nada mais comum em termos de sermões ou mesmo aulas modernas.

O Sermão da Planície descreve outro momento, outro sermão. Algumas características merecem a atenção.

O Sermão da Montanha era claramente o momento em que o Senhor, diante de um público gigantesco vindo de várias cidades da Decápole, desejava tanto se revelar como o Novo Moisés, o ‘profeta como Moisés’ prometido e elevado; como desejava simbolizar a subida à montanha como a transmissão da Nova Lei, o Sinai cumprido e elevado; os Mandamentos agora revelados plenamente na Lei do Amor.

O Sermão da Planície é feito a um público menor, marcadamente de ‘discípulos’ (Lc 6,20). O texto dá a impressão de um ensino mais direto e pessoal. Não é de se estranhar, então, que o sermão seja marcadamente sob o discipulado como uma Aliança. Não apenas as leis e conjunto ético e moral, mas a vivência da Lei mais diretamente ao discípulo. Dessa forma, algumas coisas podem ser destacadas:

  • o Sermão da Montanha (com foco nas Bem-aventuranças) é, em grande parte, na terceira pessoa. O Sermão da Planície é na segunda pessoa. Um fala dos que seguirem a Lei de Deus. O outro fala aos que escutam, diretamente, sobre como viver a Lei.
  • Esse ‘personalismo’ é mais bem demonstrado não apenas no conteúdo (ver em seguida), como no fato que o formato lembra mais precisamente a forja das Alianças no AT, e não a transmissão das leis. Na forja da Aliança, bençãos e maldições (os efeitos do nosso afastamento da Aliança) eram lembrados juntos. Não à toa, no Sermão da Planície, Nosso Senhor encadeia os ‘ai de vós’ logo depois de uma lista menor das bem-aventuranças.
  • As características descritas acima explicam melhor o motivo do Sermão da Montanha falar em “pobres de espírito” e o Sermão da Planície falar mais diretamente dos “pobres”. Se a perspectiva aqui descrita estiver correta, é razoável pensar que a transmissão das leis, não a forja da Aliança e as condições de vivência mais objetivo, fale em “pobres de espírito”. Se, por um lado, a idéia ali transmitida não exclui o caráter do olhar divino sobre os pobres, ele certamente abrange os pobres como uma categoria de sofrimento que inclui o humilde de qualquer tipo.

Por outro lado, o Sermão da Planície destaca a vivência da caridade como caráter fundamental como participação e ratificação da Aliança. Nesse ponto, o cuidado com os pobres dá um passo à frente e caracteriza a obrigação prevista na Lei e agora parte fundamental da imitação de Cristo como vivência da Igreja.

Um não exclui o outro, mas se o povo precisava aprender de maneira mais geral, os discípulos precisam ser firmes na vivência direta da caridade. Não parece à toa que os Atos dos Apóstolos, bem como as inúmeras mensagens de São Paulo sobre a coleta aos pobres como parte fundamental do seu ministério, tragam isso para o centro da pregação e vivência da Igreja, ocupando boa parte da mensagem da prática da Lei do Amor.

  • Vale notar que o Ministério Sagrado do Senhor começa com a proclamação de ‘Is 61,1’ na sinagoga (Lc 4,16-21), o texto profético que olha para o cuidado com o pobre como sinal da inauguração e realização do Reino de Deus na era messiânica, o tempo da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, de acordo com o cumprimento da Lei do Jubileu (Lv 25). Dessa forma, o Sermão da Planície confirma o caráter da inauguração do reino profético do Senhor como seu cumprimento e formulação de vivência apostólica.

Se a condição humana dos que sabem ser pecadores e buscam viver a humildade está no centro da proclamação da Lei, a vivência objetiva da Palavra no Reino inaugurado pelo Rei dos Reis está no centro do Sermão da Planície.

Em conclusão:

Como esperado, também há inúmeras semelhanças. O final dos dois sermões é sobre ‘ouvir e agir’. O próprio ato de ouvir, já na própria definição da palavra no tempo do AT, simbolizava a necessidade de ‘ouvir para entender, e entender para agir’. Não havia um sem o outro. De fato, a separação disso é tema frequente do Evangelho como uma condenação. Não se pode ouvir a Boa Nova e não sair em missão. Ouvir é agir e a Boa Nova deve ser proclamada. Especialmente em boas obras, que são a única e verdadeira demonstração de fé salvífica.

Conforme dito antes, não há razão para duvidar de dois momentos históricos distintos, sermões diferentes, para públicos distintos, adaptações na mensagem para o momento (e complemento para a eternidade), focos e ensinamentos diferentes, mas um mesmo Evangelho. Entender e viver os dois é parte integral da Boa Nova.

Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,

um Papista

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