Isaías e a guerra de Judá contra a aliança Siro-Efraimita:
A Liturgia da terça-feira da décima quinta semana do Tempo Comum – Ano A (a mesma do Ano B do ciclo litúrgico), nos traz um momento muito importante da História da Salvação, contado a partir da visão do profeta Isaías. Os relatos se passam entre os momentos das dinastias reais do norte e do sul (Reino do Norte[1] e o Reino de Judá, que mantinha a linhagem davídica) descritos no Segundo Livro dos Reis (2Rs 15-17)[2].
É um momento fundamental porque antecede a queda do Reino do Norte e desencadeia uma série de oráculos proféticos sobre o “resgate” das tribos que se perderiam, algo que seria cumprido em Cristo e na Igreja Católica, como São Paulo explica na Carta aos Romanos (Rm 9-11).
O relato de Isaías sobre esse momento vai dos capítulos 6 a 11 do livro que leva o seu nome e preserva suas profecias. O capítulo 6 não é exatamente sobre o momento, mas contém uma profecia que fala do efeito dominó que essa batalha provocaria e as consequências dos exílios que viriam.
A situação é a seguinte: o Reino do Norte vivia sob pesado tributo do Império Assírio, a maior potência da época. O rei do Norte, Peca (Faceia ou Facea), decide se revoltar contra o poderio Assírio se unindo a Rezim, rei de Damasco (Reino Arameu de Damasco, ou Aram-Damasco), na Síria. Estava formada a aliança Siro-Efraimita (ver nota 1 sobre os nomes).
Judá recusa participar da rebelião. Só podemos especular os motivos reais do que aconteceu em seguida, quando essa aliança decide atacar Judá e não a Assíria. Orgulho ferido? Ódio fraticida? Paranóia? Tudo isso, no fim das contas, é efeito do pecado. O Reino do Norte decide atacar seu reino irmão, o Reino do Sul, com ajuda de Damasco. Para todos os efeitos, o ataque é tratado por alguns historiadores como o medo de ser atacado por Judá enquanto eles estivessem lutando com a Assíria, um argumento pouco convincente para além da estratégia militar.
Isaías alerta Acaz, o rei de Judá (Is 7,1-9, o trecho da Liturgia de hoje), que Deus pouparia Judá e derrotaria a aliança Siro-Efraimita. Em seguida, Isaías nos dá um oráculo que parece contradizer o que ele acabara de falar sobre a vitória de Judá, pois ele anuncia o avanço Assírio sobre Judá. Para entender a estranheza, será preciso avançar um pouco na história.
Durante a poderosa campanha Siro-Efraimita, Judá sofreria pesadas perdas tentando se defender. Ao invés de seguir o aviso profético de Isaías e confiar que a vitória é do Senhor (Pr 21,31), Acaz pediria ajuda dos Assírios, os poderosos invasores que vinham adiando a conquista da região e cobrariam insustentáveis ‘impostos’ por sua ajuda.
Ou seja, antes disso acontecer, Isaías reconhece na fala de Acaz sobre “não pedir nada ao Senhor” (Is 7,12)[3] uma falsa humildade que esconde a falta de confiança no Senhor dos Exércitos. O rei não passou no teste! Imediatamente, Isaías anuncia o avanço Assírio que viria apenas no futuro, quando Acaz pedisse sua ajuda e se tornasse um servo através dos pesados impostos que teria que pagar anualmente. Ou seja, nenhum aviso realmente encontrou espaço no coração do rei e do povo.
É fundamental entender outra coisa: essa mesma profecia marca o começo do fim do reino de Judá. Como Deus, que forjou uma Aliança com Israel e não o abandonaria, envia um sinal de esperança. De fato, essa mesma profecia sobre um futuro sombrio é também a “primeira profecia de Emanuel”.
Em meio à dura provação que viria, o Senhor anuncia a esperança (Is 7,14): uma virgem daria à luz um filho e dará a Ele o nome de Emanuel (Deus conosco).
Essa profecia tem que ser entendida como todas as outras: se cumprindo de maneiras diferentes e em momentos diferentes. De fato, se cumprindo parcialmente em algum momento na Antiga Aliança, mas se cumprindo e elevando definitivamente na Nova Aliança.
Entre todas as possíveis interpretações para o cumprimento parcial no AT (ex: Emanuel seria o filho de Isaías; seria Jerusalém; seria Ezequias, o futuro rei etc), uma chama a atenção. O filho de Acaz, Ezequias, teria um momento de glória ao viver a Palavra do Senhor e restaurar a Liturgia, o Templo, as festas litúrgicas e os costumes conforme a Lei. Ele também desafiaria o domínio Assírio e, apesar de perder tudo, menos Jerusalém, resistiria.
Ezequias, então, é um bom exemplo de cumprimento parcial. Ele também seria um bom exemplo por que a vitória é apenas do Senhor e por que o Reino não é deste mundo. Ezequias cairia no pecado e Jerusalém seria conquistada pelo próximo grande império, a Babilônia. Dessa forma, a profecia se cumpriria definitivamente apenas em Jesus Cristo.
O que podemos retirar disso para os nossos dias? Muito mais do que é possível escrever neste espaço. O que podemos destacar de imediato é o que a Liturgia nos leva a refletir hoje: não há ‘cidade de Deus’ na terra. Só existe uma Cidade de Deus, a Jerusalém Celestial, o Reino de Deus.
Outra coisa é que a nossa fé não pode estar em homens, política, ambições de reinos cristãos etc. Nossa esperança está na missão dada pelo Senhor: a conversão de todos. Todo o resto, se for a vontade de Deus, acontecerá naturalmente, ainda que parcial e temporariamente.
Nossa missão é viver o Evangelho para que a nossa vida seja o exemplo de conversão para o mundo. Acreditar em Deus é a nossa esperança, pela Glória do Santo Nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus Conosco.
Acompanhemos a Liturgia com os corações abertos para o alimento espiritual da Palavra e da Eucaristia. Que a Palavra falada e a Palavra consumida sejam nossa esperança e nossa força. Pregue a Boa Nova sempre. De preferência com a sua vida. Se possível, ensine o que sabe. Daqui, vou fazendo a minha parte tentando ajudar os irmãos a entender melhor a mensagem bíblica, especialmente na Liturgia.
Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,
um Papista
[1] após a divisão do Reino de Israel, o Reino do Norte chamava a si mesmo de ‘Reino de Israel’. Não confundir com o legítimo Reino de Israel, que acabou e foi dividido em dois. Para o Reino de Judá e dali em diante, o Reino do Norte era chamado pelo nome de uma das tribos mais jovens e rebeldes, Efraim.
[2] durante os relatos dos Livros dos Reis, nós lemos que “o restante dos atos de tais e tais reis estão contados nos livros de crônicas”. Não confundir com os ‘Livros de Crônicas’ canônicos, ou seja, parte da Bíblia. Embora os Livros de Crônicas (1 e 2Cr) contem parte desses relatos, essas citações se referem a livros de registros históricos mais completos, possivelmente contendo informações variadas sobre os dois reinos. Esses livros se perderam e não há registro dessas versões mais completas, apenas o que Deus inspirou e preservou.
[3] a resposta de Acaz lembra, ainda que ao contrário, a resposta de São Pedro ao Senhor nos Atos dos Apóstolos (At 10,9-16), quando São Pedro pensa estar sendo testado pelo Senhor para ver se ele desobedeceria a Lei. Na verdade, o Senhor estava ensinando o apóstolo sobre a revogação das leis alimentares da Antiga Aliança.
O que vemos é que nem sempre entendemos os testes do Senhor. Temos que confiar plenamente em Sua Palavra. Ao contrário de Acaz, São Pedro não desobedeceria o Senhor e promoveria a grande mudança no Concílio de Jerusalém (At 15). Porém, mesmo para o primeiro Papa não foi fácil entender a vontade do Senhor.
Somos testados; os testes são difíceis de entender, especialmente em momentos de dificuldade; mas o importante é confiar no Senhor e nos converter diariamente para que a entrega total à Cruz seja nosso caminho para o discernimento.
Papista, fugindo um pouco do assunto, o que a Igreja fala sobre a autoria do Livro de Isaías? Vejo que alguns estudiosos falam em autoria única, outros falam em dois Isaías, a tradução da CNBB, por exemplo, fala em três e sobre uma “escola isaiana”; qual o parecer da Igreja?
Oi, Igor. Tudo bem? A Paz de Cristo!
A Igreja não define dogmaticamente isso, mas acompanha a tradição que credita o livro ao profeta Isaías.
Sim, existem muitas teorias: Isaías e mais um ou dois autores (Deuteroisaías e Tritoisaías) etc. Eu não acho que essas teorias provem algo definitivo. Elas vêem de uma mentalidade secular que não acredita em profecias. Enquanto parece uma crônica sobre o passado ou presente de Judá, eles aceitam que seja de Isaías. Mas, quando as profecias ficam óbvias sobre o futuro, eles creditam a outros autores tardios.
A linguagem e outros detalhes poderiam ser explicados por uma edição tardia. Não implica em um autor tardio. E por aí vai. Eu recomendo que o cristão, mesmo que ache que essas teorias têm sentido, busquem uma leitura canônica e literária do texto. Essa é a visão interpretativa clássica da Igreja que tem ganhado novo fôlego entre acadêmicos, graças a Deus.
Obrigado. Fique com Deus!
Muito bom o texto! Obrigado, Papista, por compartilhar conosco esta bela reflexão.
Eu que agradeço. Fique com Deus!