Este é o primeiro de uma série de artigos sobre o caráter sinfônico dos Evangelhos.
O Evangelho segundo São Marcos é o mais curto entre as quatro narrativas que nos dão o panorama da Revelação da Boa Nova de Cristo. Por ser mais curto, parece um resumo. O Grego do Evangelista é considerado mais ‘pobre’ em relação aos outros. Por tudo isso, o Evangelho segundo São Marcos foi o menos comentado durante séculos. Nunca desprezado, é claro, mas menos usado.
Alguns Pais da Igreja notaram um caráter próprio, mas ainda o viam como uma versão resumida. Enquanto outros aspectos ocuparam os escritos da Igreja por séculos, esse aspecto não foi esquecido. No século XX, muitos autores voltaram a essa observação e perceberam as qualidades únicas da narrativa de São Marcos. Nem um resumo, nem mal escrito. Embora aspectos técnicos da linguagem podem ser relutantes, sua narrativa é de um mestre contador de histórias.
Como eu já observei neste espaço, muitos autores apontam, corretamente, o aspecto sinfônico dos Evangelhos. Ou seja, eles são instrumentos diferentes para, em conjunto, nos apresentar a mais bela das sinfonias. Esquecer isso é estudar e, principalmente, viver de forma incompleta a mensagem da Revelação.
Vejamos essa complementaridade sinfônica sob a batuta de São Marcos. Por exemplo: a narrativa dos 40 dias no deserto que celebramos na Quaresma. Os três Evangelhos apelidados de ‘sinóticos’ (Mateus, Marcos e Lucas) narram como Jesus foi levado ao deserto pelo Espírito Santo, o que é fascinante por si só. Mas, enquanto São Mateus e São Lucas narram essa passagem em detalhes (Mt 4,1-11; Lc 4,4-13), São Marcos narra isso em dois versos:
“Imediatamente, o Espírito o levou para o deserto. Ele permaneceu no deserto por 40 dias sendo tentado por Satanás. Ele estava com os animais selvagens e os anjos O serviam” (Mc 1,12-13). Há muito a dizer sobre essa passagem só pela linguagem. A primeira é a marca registrada de São Marcos, a expressão ‘euthéos’ (εὐθέως), que significa “imediatamente”. Toda a narrativa de São Marcos é como um filme editado em cortes rápidos, com o Evangelista nos conduzindo pela ação frenética. Essa expressão aparece umas 60 vezes nos Evangelhos, umas 36 apenas no Evangelho segundo São Marcos, e quase sempre para conduzir a narrativa, como quem corta as cenas com a transição: “imediatamente, eles partiram…”.
Teologicamente, por que São Marcos descreve a cena dessa maneira? Enquanto São Mateus e São Lucas narram a vitória do Senhor contra a tentação demoníaca em detalhes, São Marcos parece querer apenas descrever o contexto. São Mateus narra que os anjos eventualmente vieram servir (diakonéo “διακονέω”, de onde vem a palavra para Diácono) o Senhor, São Lucas não fala sobre isso. E apenas São Marcos fala dos “animais selvagens” (theríon θηρίον).
Parece inegável o sentido sinfônico dos quatro Evangelhos. São Marcos, ao contrário dos outros dois, deseja mostrar outro aspecto do tempo do Senhor no deserto: Jesus, o Novo Adão. O cenário descrito rapidamente por São Marcos só encontra eco na narrativa da criação, quando o homem está servido pelos anjos e os animais estão sob o seu domínio, mas o homem falha em seu teste e cai na tentação do demônio.
É o cenário descrito curtamente por São Marcos que forma o mosaico das narrativas que demonstram Cristo como o Novo Adão, aquele que, ao contrário do primeiro homem, vence as tentações demoníacas. Se a narrativa da tentação é fundamental nos outros Evangelhos, São Marcos julga prudente narrar apenas o contexto para ilustrar (anjos e animais selvagens) mais claramente o “retorno ao Jardim do Éden”, dessa vez, para a vitória e resgate do homem pelo Novo Adão.
A referência aos animais não é forçada. Pelo contrário! É a maneira de nos mostrar o perfeito cumprimento e elevação da Antiga Aliança na Nova Aliança em Cristo. Eu já comentei várias vezes como o Templo era um “micro-cosmo”. Isso não é simbólico, na verdade. Guiados por Deus na construção, o Templo era um modelo do Templo na Jerusalém Celestial. Mas isso merece suas próprias postagens e livros e livros.
Outro aspecto fundamental, e nosso foco agora, para se notar isso é que o Templo representava a perfeição pré-pecado no Jardim do Éden. O Templo continha imagens (sim, Deus mandou construir imagens) de anjos, flores e… animais selvagens (1Rs 6-7)! Exatamente o que se encontraria no Jardim do Éden. Ao entrar no Templo, caminhando para as câmaras internas (assim como se caminha na Igreja do vestíbulo, que é a parte externa do Templo, para a parte interna, o Santuário e o Santo dos Santos. Não é por acaso!), você passava pelas plantas, animais e chegava até o Santo dos Santos, protegido pelos querubins, assim como o Jardim do Éden.
Em suma, enquanto a leitura de uma ou duas narrativas do Evangelho nos dão alguns aspectos do tesouro infinito da Revelação, é apenas na sinfonia dos quatro Evangelhos, observando o que eles ensinam sobre cumprir e resgatar o AT, é que podemos observar ao levantar o véu um pouco mais para contemplar melhor a infinita beleza da Boa Nova de Cristo, Seu plano de amor para nós.
É apenas unindo essas narrativas que vemos mais claramente o plano de resgate do Senhor. São Paulo explica perfeitamente isso na Carta aos Efésios: “Pois Ele nos fez conhecer em toda Sabedoria e Mistério da Sua vontade, de acordo com o propósito que ele avançou em Cristo como um plano para a plenitude dos tempos, para restaurar todas as coisas nEle, coisas nos Céus e coisas na terra” (Ef 1,9-10).
Muito mais pode (e deve!) ser escrito sobre isso. Por enquanto, isso basta para que observemos e contemplemos a beleza da sinfonia do plano de Deus para a plenitude dos tempos. Um plano de um Pai amoroso para filhos rebeldes que precisam ser resgatados pelo amor.
São Marcos, rogai por nós.
Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,
um Papista
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