Como vimos em uma reflexão recente sobre o caráter sinfônico dos Evangelhos, através de um exemplo sobre o Evangelho segundo São Marcos (https://www.papista.com.br/2020/11/03/sinfonico-sao-marcos-novo-adao/), os relatos diferentes dos quatro evangelistas não são meros detalhes. Sempre que os examinamos, percebemos que esses “detalhes” revelam algo profundo que não retira, mas acrescenta algo aos outros relatos. Relatos esses que, por sua vez, também podem diferir levemente, mas sempre com a intenção de chamar a atenção para outro aspecto da infinita riqueza da Revelação.
Talvez fosse melhor pensar nisso, para além da análise literária ou exegética, como um grupo de amigos que se deparam com um lindo cenário do alto de uma montanha, de onde se vê mais longe e com enorme riqueza de detalhes. Um amigo diz: “olhem ali! Que vegetação incrível!”; Outro: “vejam só a altura daquela montanha ao fundo!”; enquanto outro chama a atenção para o incrível efeito de luz e sombras no exato momento em que eles olharam para lá etc. Todos estão olhando para o mesmo cenário, mas cada um chama a atenção para um aspecto. Sabendo do relato um do outro, seria fácil pensar que um já chamou a atenção para uma coisa, então, vale a pena destacar outro aspecto.
O fato é que, neste mundo, ninguém pode contar toda a riqueza da Revelação. O que Deus fez por nós é revelar o Mistério do Seu amor através de relatos inspirados que contam tudo o que precisamos saber para viver a Boa Nova, contanto que estejamos ligados à Sua Igreja, aos Seus apóstolos, e saibamos que ela determina os limites da nossa interpretação. Assim como alguém teria que evitar que o relato dos amigos no topo da montanha não fosse distorcido por cada um que contasse a história depois.
Essa diferença, como vimos, enriquece o relato, formando um quadro mais claro da Revelação Bíblica. Ao mesmo tempo, um quadro mais complexo, que demanda mais reflexão e melhor viver para se adequar a cada nova percepção da profundidade do amor de Deus.
Neste artigo, eu quero focar em dois aspectos diferentes da mesma narrativa, conforme contada por São Mateus.
O Evangelista São Mateus nos traz um relato que é, com razão, chamado de “O Evangelho do Reino”. A ênfase no Reino é ainda maior que no relato dos outros evangelistas. A questão é: que Reino?
São Mateus é o único evangelista a usar a expressão “Reino dos Céus” (Basileía ton ouranós – βασιλεία των οὐρανός). Os outros evangelistas usam a expressão Reino de Deus (Basileía ton Theós – βασιλεία των θεός). Não apenas em passagens diferentes, mas nas passagens que se repetem pelos Evangelhos conhecidos como “sinóticos” (Mateus, Marcos e Lucas).
Por exemplo: o começo do Ministério sagrado do Senhor é marcado, literalmente, pela proclamação do Evangelho: Arrependa-se e creia no Evangelho, pois o Reino chegou. No Evangelho segundo São Marcos, o Senhor diz: “O tempo se cumpriu e o Reino de Deus está próximo; arrependam-se e creiam no Evangelho” (Mc 1,15).
No relato de São Mateus, a mesma passagem (Mt 4,17) diz: “[…]Arrependam-se, pois o Reino dos Céus está próximo”.
São Lucas escolheu contar esse início de forma dramática, colocando em foco um episódio de Jesus anunciando que o tempo se cumpriu ao ler o livro do profeta Isaías na sinagoga de Nazaré e indicando que tudo se cumpria agora, nEle (Lc 4,16-21). Esse é outro ponto importante da qualidade sinfônica dos Evangelhos, pois, colocado sob essa perspectiva, mostra a riqueza do relato. É basicamente a mesma intenção em todos, mas com uma riqueza inesgotável na forma similaridades e aparentes ou reais disparidades nas narrativas. Não são erros ou uma forma interpretativa forçada sobre o texto, é o caráter sinfônico real dos Evangelhos.
Nosso objetivo, neste momento, é examinar a diferença no tratamento do Reino em São Mateus. As perguntas necessárias são: por que “Reino dos Céus”? Há alguma diferença entre o Reino de Deus e o Reino dos Céus segundo as narrativas bíblicas (sem avançar demais no devido tratamento teológico dado pela Igreja e seus Doutores ao longo dos séculos, mas focando no que é possível ser retirado da Bíblia)?
Sobre se há diferença entre o “Reino de Deus” e o “Reino dos Céus”? Sim e não! Em um primeiro momento, exatamente por ser o mesmo anúncio, seria muito errado dizer que podem ser dois anúncios diferentes e que um Evangelista está certo e o outro errado sobre o que está sendo anunciado. Então, o Reino de Deus é o Reino dos Céus.
Porém, São Mateus deseja demonstrar, e o faz apenas diferenciando a nomenclatura!, outras facetas teológicas para o Reino de Deus. Poderíamos passar dias falando nisso, mas eu destaco duas facetas que saltam aos olhos com o Reino sendo destacado como “dos Céus”: o caráter eclesiológico e o caráter escatológico.
O caráter eclesiológico se refere à teologia da Igreja, o que é a Igreja e como ela é muito mais do que uma instituição humana. Ao falar no Reino dos Céus, São Mateus deixa claro que o cumprimento do Reino Davídico através do Novo Davi, não é mero reino humano e o Templo não será mais um Templo de pedra que, naquele momento, nem mais contava com a presença da ‘shekinah’, a nuvem da Glória de Deus (exatamente porque a nuvem da Glória de Deus viria com o “Filho do Homem”).
Isso é curioso, porque o Evangelho segundo São Mateus é voltado para os cristãos judeus, provavelmente lido primeiramente em Jerusalém e arredores, com a intenção de demonstrar aos judeus (que seriam os primeiros cristãos, como o Evangelista, os apóstolos etc) como tudo se cumpria em Cristo. Alguns autores, muito erradamente, viam um caráter judaizante no relato segundo São Mateus. A própria heresia Marcionista se baseava nisso e declarava que apenas o Evangelho segundo São Lucas (mais gentio) era válido.
Por que, então, eu digo que é curioso. Exatamente porque fica claro que a intenção de São Mateus não é “judaizar” o cristianismo, mas proclamar que em Cristo tudo se cumpria e que a Igreja não é simplesmente um novo reino humano. Esse é o aspecto eclesiológico fundamental que se torna ainda mais claro ao proclamar o “Reino dos Céus”. Não mais um reino ou uma comunidade religiosa (ekklesía ἐκκλησία) puramente humana, mas uma que está no mundo, mas não é deste mundo.
O segundo aspecto é o mais óbvio, o escatológico, ou seja, sobre as coisas finais. São Mateus mostra que o Reino de Deus, essa Igreja no mundo, mas que não é deste mundo, é uma etapa antes da Jerusalém Celestial, a Igreja Triunfante nos Céus! Nossa vida se passa em um mundo agora sob a realeza de Cristo (uma mensagem tão esquecida ou tão mal interpretada), sem dúvida, mas nosso olhar deve estar nos Céus, pois mesmo o que está hoje sob a realeza de Cristo é apenas um reflexo do que virá.
Ou seja, ao ler os Evangelhos unidos, a sinfonia nos revela diferentes aspectos. Até mesmo sobre o Reino de Deus! Pense da seguinte maneira: o que parece um detalhe é, na verdade, a base para a teologia católica sobre a Igreja e o Reino. Sem esse “detalhe”, todo o esforço da Igreja em desenvolver uma eclesiologia e uma escatologia seria algo sem base bíblica clara. Não que o Senhor não fale nos Céus ou na Igreja em outras passagens, mas é o fato de que o mesmo Reino de Deus é o Reino dos Céus, graças a esse “detalhe” em São Mateus, que podemos unir esses aspectos eclesiológicos e escatológicos sem medo.
Isso é ainda mais importante se percebermos que apenas São Mateus dá um “mapa” para a pregação dos apóstolos. Em uma outra passagem sobre a proclamação do Evangelho, Jesus declara a chegada do Reino, confirma a Sua autoridade em atos e palavras (Mt 9,35) e escolhe os doze apóstolos para transmitir Seu poder e autoridade (ver reflexão sobre os inseparáveis aspectos do poder e a autoridade) para proclamar e demonstrar o Reino em ação através do poder e a autoridade do Rei.
Essa narrativa da escolha dos doze é repetida nos sinóticos, mas apenas São Mateus inclui a ordem para que a proclamação comece pelas “ovelhas perdidas da Casa de Israel” (Mt 10,5-6). Note que depois de completo o Seu Ministério, pouco antes de Sua Gloriosa Ascensão, o Senhor dá um “mapa” para a pregação entre os gentios (At 1,8). Porém, isso não anula a primeira. Vemos São Paulo sempre começar sua pregação em uma sinagoga e reafirmar “primeiro ao judeu, depois ao gentio” (Rm 1,16).
O ponto é que São Mateus inclui essa ordem e ela seria cumprida mesmo mais tarde, por São Paulo. É importante notar que São Mateus está deixando claro que Jesus cumpre as profecias sobre o resgate prometido pelo Pastor Eterno (Ez 34,11-31), algo que, como vimos, seria cumprido pelos apóstolos (At 3,26; 13,46; Rm 1,16 etc).
Seria estranho se essa ordem, se esse “mapa” para a obra de proclamação, não estivesse mais clara nos Evangelhos e São Mateus a deixa clara nessa ordem aos apóstolos (Mt 10,5-6) e em forma de parábola para a cananeia (Mt 15,21-28). Ao demonstrar sua fé, a cananeia nos permite vislumbrar o que seria o segundo mapa: a proclamação para os gentios (At 1,8).
Em suma, São Mateus nos dá dois “detalhes” que ensinam mais do que podemos aprender, na verdade. Um é sobre o Mistério do Reino dos Céus. O segundo é como a proclamação do Reino se cumpriu entre os apóstolos: primeiro aos judeus, depois aos gentios.
Esse é o caráter sinfônico dos Evangelhos que, unidos, nos ensinam a ouvir algo ainda mais grandioso do que cada instrumento separado. Nosso entendimento sobre a Igreja e o Reino dos Céus vem do que, para alguns, é mero detalhe na narrativa, ou “apenas” um nome diferente. Mas é muito mais que isso. É a Graça de Deus operando sobre cada Evangelista para que tenhamos uma riqueza que um só não poderia descrever.
São Mateus, Apóstolo e Evangelista, rogai por nós!
Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,
um Papista