Neste segundo domingo da Quaresma, a Igreja abre as Escrituras para nos renovar as forças para a caminhada quaresmal.
Nosso sacrifício durante a Quaresma seria inútil se não fôssemos constantemente lembrados do motivo das nossas pequenas – mas incômodas – penitências. A Liturgia de hoje joga toda a luz sobre o aspecto principal, mas deixa o secundário para que nós o descubramos lendo e meditando sobre as leituras.
O que não está tratado nas leituras em si, está implícito no contexto do Evangelho de hoje. Nos três Evangelhos que descrevem a Transfiguração (Mt 17,1-13; Mc 9,2-8; Lc 9,28-36), ela ocorre no momento em que o Senhor começa a Sua caminhada final para Jerusalém. Dali em diante, tudo muda.
Logo após a Transfiguração, os três Evangelhos descrevem uma cura através de um exorcismo para demonstrar o poder glorioso de Deus em ação no Filho. Em seguida, o Senhor fala do Seu Sacrifício Salvífico a partir de Sua entrada em Jerusalém, pela segunda vez. Tudo muda daí em diante. O ritmo muda, as mensagens mais duras são dita, as tramas contra o Senhor surgem em paralelo aos milagres e às mensagens (indicativo da reação demoníaca perante a iminência da derrota) etc.
Se São Marcos e São Mateus contam pouca coisa entre esse previsão da Paixão e morte e a última, São Lucas praticamente abre um longo (e belo) parêntese para contar diversas parábolas do Senhor. É bem possível que, pelo espaço que ele deixaria entre a segunda e terceira previsão da Paixão e Morte do Senhor, São Lucas acrescente um “detalhe” após a narrativa da Transfiguração: “quando se cumpriram [sumpleróo συμπληρόω] os dias da Sua Ascensão [análepsis ἀνάληψις], Ele voltou sua face a Jerusalém”. Isso indica a mudança de direção pela resolução do Senhor em caminhar para o Seu Sacrifício.
Como sempre, o Senhor não disse isso em um vácuo. Isso é uma alusão a uma passagem do Servo Sofredor na profecia de Isaías (Is 50,7). É um trocadilho difícil de explicar em uma tradução, mas o Servo sofredor “torna [volta] a sua face como pedra e não será envergonhado”. São Lucas usa a mesma expressão que a versão grega do AT para ilustrar que, com um gesto resoluto do rosto [como o Servo Sofredor que tornou seu rosto rijo na direção do Senhor e não pode ser detido em Sua missão salvífica] determinou que o resto da caminho é na direção de Jerusalém.
Da mesma maneira, o profeta Ezequiel foi ordenado pelo Senhor para “virar o rosto” para profetizar e julgar a sua terra, Judá(Ez 21,2). Mais especificamente, sobre Jerusalém e o Templo (Ez 21,7). Exatamente como o Senhor profetizaria sobre a destruição do Templo e a transição definitiva da Antiga para a Nova Aliança.
Então, objetivamente, a Transfiguração é um momento especial na narrativa do Ministério do Senhor. Ela indica que estamos em um momento de transição antes do começo da entrada do Senhor em Jerusalém, que é, de facto, o começo da narrativa pascal. De certa maneira, são três atos: antes da Transfiguração (Encarnação, identidade divina de Cristo, temas como o discipulado, a Lei do Amor etc); da Transfiguração até a entrada em Jerusalém (missão e urgência, polêmicas e resoluções); e o Senhor em Jerusalém (Páscoa).
O objetivo da Liturgia, neste momento da Quaresma, é também nos fazer olhar para a Páscoa que se aproxima. Todo o nosso sacrifício, todas as tribulações das nossas vidas, só têm sentido por causa da Páscoa. Muitas vezes nos pegamos achando que nada faz sentido e que o sofrimento é à toa. Nossas penitências podem estar nos exaurindo e as tentações para abandonar tudo, crescendo. É a hora de olhar para Jerusalém e, com o Senhor, caminhar resolutamente.
Por quê? Porque a mensagem central da Liturgia é que o Senhor é o “Filho Amado de Deus”. Essas palavras não são à toa. Nós lemos sobre a voz de Deus Pai chamando o Senhor de “meu Filho Amado” duas vezes. Uma vez no Batismo do Senhor e a outra na Transfiguração.
Como sempre, isso não é apenas uma demonstração de carinho. Também não é “apenas” uma indicação da divindade de Cristo. Esse é o sentido imediato, mas o Senhor quer que o povo entenda mais que isso. Especialmente as pessoas que viviam sob a Antiga Aliança e saberiam onde elas já ouviram isso.
Essa foi a maneira que o Senhor descreveu Isaac para seu pai, Abraão, como vemos na primeira leitura de hoje: “pegue o seu filho, seu amado filho único[…]” (Gn 22,2). Embora as traduções costumem separar como “seu filho único, a quem amas”, é importante que a expressão “filho amado” seja mais evidente. Na versão grega, a expressão usada por Deus Pai, tanto no Batismo como na Transfiguração, é a mesma, agapetós (ἀγαπητός): amado.
Jesus é o Novo Isaac. Abraão passou no teste mais duro porque teve fé absoluta no Senhor e aceitou sacrificar o que era tudo para ele, seu filho amado, na certeza de que o Senhor faria tudo certo no fim. E fez! O Senhor o impede de sacrificar Isaac. Não só porque Abraão passou no mais duro teste da fé, mas porque ir até o fim não resolveria o problema do pecado. O sacrifício de Isaac era uma prefiguração do sacrifício salvífico. O cordeiro sacrificado tomaria o lugar de Isaac, assim como o Cordeiro de Deus tomaria o nosso lugar na Cruz e, sobre Si mesmo, jogaria nossos pecados.
A alusão é clara e a Igreja sempre a entendeu assim. Jesus é o “Filho Amado” anunciado novamente pelo Senhor na Transfiguração. O Senhor deseja que nós entendamos a referência a Isaac. Jesus é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. Sua face está voltada para Jerusalém e nada poderia impedi-Lo. Ele não seria envergonhado, mesmo com toda a nossa vergonha sendo atirada sobre Ele.
São Lucas descreve Deus Pai como dizendo: “Esse é o Meu Filho, Meu Escolhido”, numa alusão a outra profecia do Servo Sofredor (Is 42,1).
Essa referência ao Filho que Deus “não poupou por nós”, que São Paulo faz na segunda leitura, é a perfeita alusão ao que o Senhor fez com Isaac, mas não com Jesus. Deus não nos usa. Ele, literalmente, corta na própria carne para nos salvar. O que Ele quer de nós? Misericórdia! É a única maneira de andar com o Senhor entre os vivos, como cantamos no Salmo. Nosso sofrimento é a participação no sofrimento do Senhor. Ele não pode se converter em sofrimento ao próximo, mas no mesmo amor que se sacrificou por nós, a misericórdia de Deus.
É normal, neste momento da Quaresma, que estejamos cansados ou sem direção. Nossa direção? A caminho de Jerusalém para o Sacrifício Pascal! O caminho para a Jerusalém Celestial é o caminho do Filho Amado, o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo por amor. É a hora de redobrar nossos esforços com alegria, pois nosso sofrimento é nada menos que a participação, comunhão, com o Sacrifício Pascal. Que grande privilégio Deus nos dá em Sua misericórdia!
Seremos lembrados da alegria no próximo domingo, mais um momento para recuperar as nossas forças. Por enquanto, nos basta refletir sobre como os nossos sacrifícios são um reflexo do amor do Senhor, pois, mesmo nos momentos difíceis “minha Graça é suficiente para você, pois meu poder se faz perfeito na fraqueza” (2Cor 12,9). Aleluia!
Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,
um Papista