O capítulo 8 da Carta de São Paulo aos Romanos é o “Locus Theologicus” da epístola, ou seja, seu centro teológico, a parte principal para onde tudo o que foi escrito converge e o que vem depois é consequência dessa construção. Na narrativa armada brilhantemente pelo apóstolo, o Espírito Santo agora domina o centro do palco. Incríveis 22 duas vezes o apóstolo usa a expressão “pneuma”. Em apenas duas delas ele se refere ao espírito humano, sendo vinte referência direta ao Espírito Santo. Fica pouca dúvida sobre qual é o centro teológico da sua carta.
Acima de tudo, São Paulo deseja mostrar a ação do Espírito Santo na Nova Aliança. A Antiga Aliança, baseada na Lei, não poderia ser ruim vindo de Deus. Porém, sua ação escancarava o pecado em nós de tal maneira que, na prática, diz o apóstolo, ela direcionava a nossa atenção para o pecado, mas sem nos dar a força para vencê-lo.
Em outras palavras: a Lei jogava luz sobre o pecado. Isso é bom e ruim. Bom porque ensinava e demonstrava nossos erros. Ruim pelo nosso lado que, sem a força divina necessária para evitá-los, terminávamos presos a eles. A Lei, sozinha, não derrotava a “lei do pecado”, a concupiscência. É preciso algo a mais para que a Lei seja vivida. Não anulada, como confirma o Senhor (Mt 5,17), mas cumprida.
Dessa maneira, a salvação cruciforme em Cristo, e a vinda do Espírito Santo, nos fazem, ma Nova Aliança, capazes de manter a Lei. A Graça é dada para que nos mantenhamos na Aliança.
Seria tão arrogante quanto impossível tentar tratar de todo o tema do capítulo 8 da Carta aos Romanos aqui. Livros foram escritos desde os Pais da Igreja apenas sobre essa descrição resumida. Então, eu quero destacar apenas um ponto que é tão mal entendido quanto é fundamental para se entender essa transição da Lei para o Espírito que São Paulo deseja ensinar.
No versículo 23 (Rm 8,23), São Paulo fala sobre a nossa expectativa escatológica, pois esperamos a união final com Deus. Porém, não é a mesma expectativa de antes, pois, como diz o apóstolo: “nós, que temos as primícias do Espírito”. Essa é uma expressão chocante. Para entender isso, precisamos entender o que são as “primícias”.
Primícias são os “primeiros frutos”. Nesse ponto, São Paulo não está fazendo especulação teológica ou sendo simbólico. Ele está se referindo exatamente à Lei, ao Antigo Testamento, para explicar algo novo em Cristo. Deus determinou que os primeiros frutos fossem sempre dEle. Seja o filho primogênito, seja o primeiro novilho, os primeiros grãos da colheita etc.
Isso faz parte do sentido do sagrado. De fato, é parte da justiça. Damos o que é melhor a Deus para nos lembrar que para tudo há uma boa ordenação. Apenas dando o melhor a Deus, nós saberemos que há algo melhor do que nossos anseios mais básicos e, então, poderemos superá-los com a ajuda de Deus.
A expressão grega é “aparché”(ἀπαρχή), usada basicamente em contexto cúltico. Ou seja, tanto no AT como no NT, essa expressão está ligada à Liturgia. O contexto cúltico é tão fortemente ligado à expressão que ela pode ser verificada em fontes extra-bíblicas, como o historiador Heródoto, nascido séculos antes de Cristo, que usa a expressão em suas “Histórias”, por exemplo, para descrever as ofertas aos deuses.
Então, para além de qualquer sentido espiritual, é preciso examinar essa expressão em sua origem e como essa prática foi tomada por Deus para não mais se ofertar falsos deuses, mas para que o homem saiba bem ordenar tudo e, assim, viver a correta relação com o Senhor e com o próximo.
Em várias partes do AT (na LXX, o texto grego), essa expressão descreve as ofertas dos primeiros frutos (ver: Ex 22,29[28]; 23,19; Nm 18,12; Dt 18,4 etc). Existem variações não litúrgicas no uso da expressão? Sim, mas elas também se referem a dar o melhor a Deus e, assim, entender o que é melhor para nós, como Dt 33,21.
Entendido que São Paulo usa uma expressão que claramente é uma referência aos “primeiros frutos” como citação do AT, nós podemos entender melhor o fraseado e, por consequência, a sua intenção. Se entendemos até aqui, veremos que a conclusão natural é que, entregando os primeiros frutos a Deus, Ele nos dará uma colheita farta, uma vida mais santa.
Vale notar que, na Nova Aliança, São Paulo fala em Deus nos dar os primeiros frutos. De fato, entendendo que é uma expressão teológica, a frase poderia ser retraduzida como “o Espírito como primeiros frutos de Deus” a nós! Unindo o uso da linguagem e a descrição teológica baseada no AT, podemos entender que São Paulo nos ensina que, na Nova Aliança, Deus nos dá os frutos do Espírito Santo (Charismata) e os bens mais poderosos de Deus, a Sua Graça Divina.
Através do Espírito Santo, em perspectiva da Graça advinda do Sacrifício Pascal, Deus nos dá a Sua Graça para que, agora sim!, possamos manter a Lei. Cristo não anulou a Lei, mas apenas através da Sua Graça, os primeiros frutos que Deus agora nos oferece, nós temos a força para cumprir a Lei.
Onde entra exatamente o Sacrifício Pascal nisso tudo? Tudo isso só é possível porque, segundo São Paulo, Cristo foi “primeiro fruto” (1Cor 15,23), primícia perfeita a Deus! Se em Adão todos morrem, em Cristo todos teremos vida eterna (v.22). Como? Porque o Senhor agora nos dá as primícias do Espírito Santo, a Graça Divina e os frutos do Espírito (Carismas), que nos dão força e ajudam a nos ordenar ao Senhor. Fazendo de nós, também, frutos de amor ao próximo.
Não mais estamos sujeitos à Lei sem um reforço do Espírito, percebendo o pecado, suscetíveis à concupiscência, mas sem a força que vem de Deus. Nós temos a Graça Divina.
É daí que o mesmo São Paulo diria, em sua Carta aos Efésios, que esses são os “primeiros frutos da nossa herança” (Ef 1,14). Aquilo que o Senhor nos dá, as primícias do Espírito, são como um “adiantamento” daquilo que teremos em plenitude no Reino dos Céus. O que experimentamos hoje nas primícias do Espírito (Gl 5,22-23) nos possibilita crescer em santidade para, um dia, receber plenamente nossa herança.
Voltando a ‘Rm 8,23’, nós gememos esperando pela adoção, esse momento final em que receberemos nossa herança como co-herdeiros de Cristo (Rm 8,17). Até lá, Cristo, primeiro fruto de amor, nos abriu o tesouro da Graça Divina que vem como primícias de uma realidade futura, plena e perfeita no Reino dos Céus. Vivamos como quem aproveita tamanha bênção: dando testemunho da Graça que salva e dá frutos de amor ao próximo.
Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,
um Papista