Já escrevi neste site sobre alguns santos e figuras importantes da história da Igreja e do cristianismo em geral. Minha intenção agora é me debruçar um pouco sobre um assunto muito querido, as pessoas chamadas de “Doutores da Igreja”. Como o site não é um estudo sistemático, eu nem sempre consigo (ou nem tento) manter uma cronologia coerente, ou mesmo escrever seguidamente sobre um assunto. Costumo voltar ao assunto de vez em quando. Então, não espere nenhuma sequência especialmente coerente. Tudo depende da minha leitura na época, da inspiração ou memória de alguma passagem que me faça voltar aos livros sobre os temas.
O que é um “Doutor da Igreja”? É um título que indica que essa pessoa não só viveu uma vida de exemplo e santidade, mas foi fundamental para o pensamento teológico, bíblico ou espiritual da Igreja. Pessoas cujos exemplos e legados avançaram o entendimento de todos para as questões espirituais, e seus escritos (ou escritos sobre eles) são fundamentais para um crescimento intelectual e espiritual em Cristo e Sua Igreja. Embora seja um título oficial, é apenas um título para destacar a reverência agradecida dos cristãos e a importância desses homens e mulheres, e não uma posição hierárquica. Não existe uma escala de santidade ou de conhecimento. O título de Doutor da Igreja é como um selo que destaca esse autor como alguém que você pode – e deve – ler sem medo, com a garantia de que o que ele expressou é aceito e recomendado pelo Magistério. Além de garantir que você está lendo alguém que foi essencial para a vida cristã de tantos. Algumas pessoas foram tratadas assim já na época próxima de sua vida, como Santo Agostinho. Outros foram praticamente “redescobertos” muito tempo depois, como São Pedro Crisólogo, que viveu no século V e foi praticamente reintroduzido ao mundo, pelo menos em difusão mais popular, apenas no século XVIII, quando foi proclamado Doutor da Igreja. Falarei sobre alguns deles em artigos, com alguma biografia, mas sempre um foco em alguns pontos específicos, já que é possível encher livros inteiros e não esgotar o que falar de suas vidas e obras. Certamente já falei algo sobre alguns deles em outros artigos e, se Deus quiser, ainda falarei. Depois dessa breve apresentação, um pouco de nomenclatura e introdução, vamos em frente.
Entre os primeiros Doutores da Igreja, nós temos um seleto grupo chamado de “Doutores Orientais”, que viveram no Império Bizantino, a parte do mundo chamada de Império Romano de língua grega, ou do leste. São eles São João Crisóstomo, São Gregório de Nazianzo (São Gregório, o Teólogo), São Basílio de Cesareia (São Basílio, o Grande), e Santo Atanásio. Todos viveram mais ou menos na mesma época, o século IV.
Crisóstomo significa “Boca de Ouro”. É um apelido dado a ele pela força da sua pregação. Só se sabe que ele se chamava João, mas o resto do seu nome se perdeu sob a força do apelido, o que era comum na época. Assim como tantos outros na antiguidade, João estudou retórica, uma das artes mais bem vistas (e por vezes mal vistas, Platão que o diga) desde antes do seu tempo até a Idade Média. São João se destacava em eloquência e é dito que seus discursos e pregações inigualáveis juntavam multidões. Como todos que discursam a verdade, e com isso atraem ovelhas para Cristo (o bom pastor), Crisóstomo teve problemas, principalmente no final da sua vida. Voltarei a falar mais adiante sobre a importância da eloquência.
São João Crisóstomo, como muitos em sua época, foi atraído para o que mais tarde seria uma vida monástica mais organizada. Antes dessa organização, porém, muitos se sentiam atraídos por uma vida como eremita no deserto. Uma vida de pesados sacrifícios, que se provou não ser a vida para ele. Com sua saúde debilitada, João volta para Antióquia. Sua fama chega até Constantinopla, onde sua devoção, conhecimento e eloquência fazem dele Arcebispo. Em um dos seus estudos sobre os Pais da Igreja do leste, a professora australiana Pauline Allen reconta a anedota que João teve que ser retirado quase escondido de Antioquia para que seus fieis não se revoltassem contra a remoção dele.
De sua vida de penitência e pastoral incansável até suas brilhantes interpretações deixadas em seus sermões, São João Crisóstomo é um pensador completo e um pastor devotado às suas ovelhas. Sua preocupação com os pobres e desprotegidos, além de comovente, é expressada de uma forma que em muito influenciou a Doutrina Social da Igreja, mais tarde definitivamente expressa pelo Papa Leão XIII e interpretada por Belloc e Chesterton, entre outros. São João Crisóstomo era um defensor de uma vida austera e da caridade como um modo de vida. Ele condenava os excessos na posse e a falta de humildade no vestir e nos demais sinais de uma vida materialista. Especialmente por essas pregações e por combater sem descanso as heresias de seu tempo (heresias que seduziam até mesmo boa parte do clero local), Crisóstomo foi exilado e morreu em seu isolamento. Nem mesmo os apelos do Papa foram suficientes para comover o Imperador e os bispos hereges que tramaram contra o santo.
Uma das histórias mais comuns sobre o exílio de João conta que a Imperatriz se incomodava com a pregação sobre a necessidade de austeridade e que por isso o Imperador o exilou. Nessa teoria, a participação dos bispos hereges é secundária. Me parece uma aplicação exagerada de uma interpretação histórica materialista. A reação dos hereges e a relação confortável dos mesmos com o estado me parecem motivos muito mais sólidos. Até hoje, infelizmente, vemos membros da Igreja se apegando demasiadamente a governos e ideólogos. As consequências costumam ser um apego aos mimos recebidos em momentos de bonança.
São João era um defensor de uma vida de oração e da devoção eucarística, esse grande exemplo de vida contemplativa perante o corpo de Cristo. Sua pregação frequentemente recomendava essa devoção. Um elemento curioso em sua pregação são as práticas muito similares à vida monástica, como acordar no meio da noite para rezar.
Seu entendimento do sacramento da reconciliação é uma benção para todos até hoje. Crisóstomo falava sobre o que muitos esquecem de citar como elemento da reconciliação: o arrependimento. O arrependimento, ensinava Crisóstomo, é o elemento da conciliação que, além do perdão, possibilita uma profunda conversão. Sem isso, dizia ele, a reconciliação era como encher de água um vaso furado. Procure frequentemente a reconciliação, sim, mas é preciso se arrepender e se esforçar de verdade para uma mudança, dizia o santo. “Entre na Igreja e se limpe do pecado, pois a Igreja é um hospital, e não uma corte da lei. Não tenha vergonha de entrar na Igreja. Tenha vergonha quando você peca, mas jamais tenha vergonha de se arrepender“. É, sem dúvida, um conselho a ser lembrado por todos.
João não era só um teórico. Ele reformou completamente o clero sob sua orientação antes de começar a pregar reformas espirituais mais profundas para os leigos. É difícil dizer que alguém já leu tudo do santo, pois ele deixou milhares de homilias e tratados. Sua exegese é brilhante e um bálsamo para a mente que deseja penetrar mais profundamente nos textos bíblicos. Se muitos não leram nada ou muito pouco desse grande santo, todo cristão colhe os frutos do trabalho de São João Cristóstomo na missa. Sua Divina Liturgia (Divina Liturgia de São João Crisóstomo é até hoje usada e em qualquer missa você vê pelo menos uma versão dessa liturgia. No rito bizantino ainda é usada completa.
Uma nota sobre a eloquência sob o exemplo de São João Crisóstomo:
Eloquência é uma arte especialmente importante para a pregação. Infelizmente, ela foi substituída por apatia em parte do púlpito moderno. Apatia ou uma versão “carismática” (não falo do uso dos Carismas, mas do discurso exagerado) que, por vezes, faz o púlpito parecer um circo. Para alguns, a verdadeira eloquência é algo obsoleto ou reclamação de quem vive no passado. Em geral, esse tipo de colocação é apenas uma forma de ignorar as demandas da retórica e da eloquência para o bem da vida da Igreja. Pior, ignorar as consequências dessa falta de eloquência, como a apatia transmitida aos leigos, ou a infantilização da fé. É preciso, no entanto, mergulhar na literatura e no estudo sistematizado para se chegar à verdadeira eloquência. Em nosso tempo, infelizmente, muitos acham que basta falar pomposamente. Ou ainda que essa dedicação o impede de deixar sua marca pessoal, a “espontaneidade”. Nada mais falso, já que o estudo é apenas a maneira de equipar alguém com os instrumentos certos para que Deus possa utilizá-los melhor na pregação. Se você não tem os instrumentos (além de uma vida de oração), Deus não invadirá o seu livre-arbítrio e falará por você. Ele o ajudará se você se ajudar e assim permitir. O abuso dos dons carismáticos, a deturpação do que é a ação divina em todos nós, infelizmente, tem corrido sem freio em parte da Santa Igreja. Tanto clero como leigos. A recuperação da eloquência, e o exemplo de São João Crisóstomo, são essenciais para parte do clero atual da Igreja, perdido em si mesmo e fechado para o que Deus pode fazer através de você para que assim sua missão de pastor de ovelhas seja cumprida.
Sobre São João Crisóstomo, tudo o que eu poderia dizer ainda seria pouco. Sua devoção eucarística, que influenciou diretamente santos como São Pio X e tantos outros; sua pregação sobre o perdão; sua preocupação com os pobres numa forma fundamental para a verdadeira Doutrina Social da Igreja; sua exegese; sua eloquência; mas, fundamentalmente, sua vida de exemplo e carinho para com suas ovelhas, fazem de São João Crisóstomo mais necessário do que nunca. Não só ele é um dos meus autores favoritos e santo de devoção, como é merecidamente um Doutor da Igreja, um homem cuja influência é perene, e até hoje sua vida e trabalho são essenciais para o mundo todo.
Que a disciplina e a paixão pela Verdade, que fizeram o santo ser conhecido e honrado pelo mundo todo, e nos brindaram com a benção de sua vida e obra, nos acompanhem por toda a vida. São João Crisóstomo, rogai por nós.
Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,
um Papista
Sempre que venho aqui o tema cai como uma luva 🙂