Em sua obra-prima, O Senhor dos Anéis, J.R.R. Tolkien produziu uma das grandes peças de literatura cristã de todos os tempos. Ao contrário da obra do seu amigo C.S. Lewis, que é totalmente direto em sua analogia nas “Crônicas de Nárnia“, Tolkien tomou todo o cuidado para diluir as referências cristãs por todo o seu trabalho. Com isso, Tolkien produz um trabalho muito mais ‘tipológico’ do que simplesmente fazer analogias ou metáforas cristãs.
O que é tipologia? Podemos fazer duas definições básicas. O filósofo Mário Ferreira dos Santos ensina que tipologia é “uma realidade conhecida que ilumina uma realidade desconhecida“. Ou seja, uma representação de uma realidade conhecida para que o leitor entenda algo desconhecido. A segunda definição é a teológica. Essa definição em nada anula a primeira, apenas a coloca no contexto teológico. Tipologia bíblica, no final das contas, sempre demonstra uma prefiguração de Cristo. Em resumo: a tipologia bíblica se usa de uma realidade conhecida para demonstrar uma realidade divina, que sempre se cumpre em Cristo. Note que isso não significa que tudo representa literalmente Cristo, mas que, de uma forma ou de outra, ela se cumpre em Cristo, mesmo quando se relaciona a outra pessoa ou situação bíblica.
Se podemos dizer uma coisa de Tolkien é que ele conhecia bem as Escrituras, e como a dinâmica tipológica ocorre na História da Salvação. Assim como na Bíblia, e ao contrário do que fez Lewis, Tolkien cria ‘tipos’ em diferentes personagens e situações. Ou seja, não é apenas Aslam, o Leão de Nárnia, que prefigura Cristo. No universo de Tolkien, esse ‘tipo’ aparece representado em diversas situações e personagens diferentes. Não há um único ‘tipo’ de Cristo na obra de Tolkien, mas toda uma tipologia bíblica espalhada pelos livros.
No primeiro dia do mês de maio, nos lembramos de São José, marido de Maria e pai adotivo do Senhor. Lembramos dele como “São José Operário”, uma tradução um tanto quanto grosseira, senão marcada de ideologia, para o nome bíblico da profissão de José. Na Bíblia, ele é descrito como José “Tekton” (τέκτων), que significa artesão, e foi tradicionalmente tratado como ‘carpinteiro’.
Para além da definição técnica, tipologicamente podemos conceber José como ‘arquiteto’, ‘planejador’, ou ‘mestre construtor’. Por quê?
O primeiro Evangelho da Bíblia é o de São Mateus. Escrito primeiramente para um ‘público-alvo’ judaico, o evangelista abre o seu testemunho com uma genealogia (Mt 1,1-17). Se genealogias (toledoth, em hebraico) são importantes para as famílias atuais (embora tenham perdido muito do sentido na modernidade), elas eram fundamentais para os judeus da época. No caso especial da genealogia apresentada por São Mateus, elas indicam o cumprimento das profecias sobre a linhagem davídica, a linhagem real em que o “Filho de Davi”, o grande rei dos judeus, nasceria. Era nessa linhagem que a benção divina seguiria até a chegada do Messias. Ou seja, para comunicar a Boa Nova para os judeus, era fundamental demonstrar, em primeiro lugar, que Jesus era da linhagem de Davi.
Em ‘Mt 1,16‘ lemos que “Jacó gerou José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que é chamado Cristo“. Vale lembrar que Jesus foi gerado (não criado) em Maria pelo Espírito Santo, e “criado” apenas por José como seu filho adotivo. Daí a genealogia se cumpre. Mas se Jesus não era filho biológico de José, a genealogia se cumpre? Sim! Porque a genealogia segue a benção divina, que nem sempre é sem interrupções na linhagem física. O que importa é que os judeus sabiam perfeitamente do que o evangelista estava falando quando ouviram pela primeira vez a sua versão da Boa Nova.
Assim como na Bíblia, Tolkien, conforme dito antes, espalhava os ‘tipos’ pela sua obra. Aragorn era o rei oculto, que via seu trono por direito ser ocupado por um impostor, o falso rei Denethor, que negando o retorno do verdadeiro rei, termina servindo a outros idólatras, os discípulos de Sauron. Aragorn vivia no exílio, entre povos diversos ao longo da vida.
Da mesma forma, José é o rei oculto, que via seu trono por direito ser ocupado por um impostor, o falso rei Herodes, que serve a outros idólatras, os romanos. José vive exilado em Nazaré, e não em Jerusalém, lugar em que deveria ocupar o seu trono.
Por outro lado, vemos José como um ‘tipo’ para o Rei Davi, o rei “arquiteto” do plano para construir um Templo para abrigar a Arca da Aliança (mas termina construindo Jerusalém para abrigar o Templo), e como Salomão, que é o “mestre construtor” do Templo. José que aceita seu papel real como aquele que se casará e abrigará Maria, a nova Arca da Aliança. Ao contrário de Davi, ele também é Salomão, que constrói o Templo, e ao contrário do sábio Rei Salomão, não cai em erro. Maria é abrigada por José, e sendo ela a ‘sede da sabedoria’, traz ao mundo a Sabedoria eterna, o Messias prometido, o Cristo de Deus.
Lembremos que uma “casa real” é mais do que uma casa para morar. Assim como a rainha da Inglaterra tem a sua linhagem real, a “Casa de Windsor”, toda simbologia descrita antes não é mera ilustração, mas a representação de uma linhagem real legítima.
A presença divina, Jesus, vem habitar a casa de José, que forma uma casa para o Senhor não só com material de construção, mas com o alimento que alimentou o Pão da Vida, e com a base sólida de uma família. Dessa forma, José também ajuda a construir o novo Templo, que é Cristo, aquele que reconstruiria o Templo em três dias após a sua destruição. Por fim, José é o construtor da casa do Filho de Davi, e guardião da União Hipostática, a união em Cristo que é 100% homem e 100% divino, o mistério da fé.
Tipologia bíblia, assim como utilizada com maestria por Tolkien, está espalhada em vários ‘tipos’. José sai de cena quando seu santo trabalho está terminado, e não se fala mais nele na Bíblia. Seu trabalho está terminado como o rei oculto, e o Retorno do Rei se dará com seu filho adotivo. Aragorn é o rei oculto, e seu retorno se dará quando a fundação da lei do amor estiver completa, e a antiga cidade dos reis puder se tornar a nova Jerusalém. Nesse momento, o rei retornará para reinar com uma nova mensagem, a Boa Nova para unir a todos. Não na idolatria do anel para a todos governar e na servidão aprisionar. Mas em uma comunhão universal, Católica (καθολικός = katholikós).
Festejamos hoje o dia de São José Operário, o ‘tekton’, artesão que construiu a família e abrigou em seu Templo a Arca da Aliança (Maria), e no tempo certo seu filho adotivo, funda a Nova Jerusalém, a Jerusalém celestial para onde nos dirigimos todos os dias na Santa Missa. José, o rei oculto que inspirou também Aragorn, o rei oculto de Tolkien. Que São José interceda por todos para uma vida de trabalho nas vinhas do Senhor.
Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,
um Papista
Excelente artigo! Parabéns, meu amigo. Que Deus lhe abençoe.
Muito obrigado! Amém! A você e os seus também!
Muito bom aprofundar mais minha FÉ baptismal.
Alegria! Fique com Deus!
Parabéns pela iniciativa em espalhar o pensamento católico.
Eu que agradeço! Fique com Deus.
Descobri agora o Papista e fiquei muito feliz com a descoberta. Já passei para o meu esposo.
Obrigada pelos belos e iluminados textos
Deus te abençoe e Nossa Senhora passe à frente de suas dificuldades.
Muito obrigado pelo comentário.
Amém, a você também! Fique com Deus.
Sempre nos brindando com textos incríveis e simples. Obrigado por existir, Papista!
Meu Deus, mais que texto primoroso! Fico só na dúvida em como pude viver tanto tempo sem conhecer tanto a Bíblia quanto a obra de Tolkien da forma certa. Muitíssimo obrigado, Papista. Ainda tenho muito a conhecer, mas em seu site encontro os fundamentos em que me basear.
Eu que agradeço pelas palavras. Se o meu trabalho servir para aproximar as pessoas de Deus, e de grandes autores que falaram melhor eu sobre Deus, como Tolkien, ficarei feliz.
Fique com Deus! Abraços!