Pensando em escrever mais um artigo sobre o Natal, me pego voltando a um texto que, em princípio, não fala diretamente sobre a data: ‘Fl 2,6-11‘.
Durante a sua missão, São Paulo nos brindou com os primeiros escritos teológicos da história. Ele foi o primeiro a nos entregar textos sagrados que interpretavam a Revelação. Durante toda a sua difícil caminhada missionária, o Apóstolo dos Gentios passou por todo tipo de provação. Entre elas, a prisão. Em sua segunda temporada em uma prisão romana, ele escreveu as “cartas da prisão”: Efésios, Filipenses, Colossenses e Filêmon.
Em sua carta à Igreja de Filipos, na Macedônia, São Paulo escreve o texto teológico mais importante sobre a humildade demonstrada por Cristo nos Evangelhos. Examinemos melhor o texto para entender sua importância para nós, especialmente no Natal.
É importante entender que as nossas traduções em português não fazem justiça a esse trecho, que tem um vocabulário difícil. Usarei como base a tradução da ‘Bíblia de Jerusalém’.
“Ele, estando na forma de Deus, não usou de seu direito de ser tratado como um deus” (Fl 2,6).
Esse talvez seja o pior momento de uma tradução que, no geral, é boa. Em primeiro lugar, a expressão “como um deus” jamais deveria passar em uma revisão. A idéia para explicar como Jesus poderia ser tratado se quisesse pode até funcionar, mas não “como um deus”, mas “igual a Deus“! A expressão grega é “isos theos“, que seria algo como “similar a Deus“, como está melhor traduzido na Vulgata (aequalem Deo).
A palavra chave para se entender essa frase é “ἁρπαγμός” (harpagmós), que significa, ao pé da letra, “se apoderar, roubar, ou tomar para si (por força)”. Uma boa tradução seria algo como “apesar dEle ser como Deus, não via sua igualdade com Deus algo a ser explorado“. A palavra “explorado” é o melhor sentido que os exegetas encontraram. Note que a palavra “harpagmós“, usada por São Paulo, não é usada em nenhum outro lugar do Novo Testamento. Segundo alguns especialistas, é o primeiro uso da expressão na literatura da época. Ou seja, a tradução literal, como “algo a ser apoderado” não faz sentido. É preciso colocá-la em seu contexto.
O que nos revela o contexto preciso, no final das contas, é o começo do versículo seguinte: “mas (Cristo) se despojou“. Outra péssima tradução de uma versão que não costuma ser tão imprecisa ou errar tanto na escolha do vocabulário. Curiosamente, é a versão da ‘Bíblia Vozes’ que traz a melhor tradução para essa frase: “Mas esvaziou-se a si mesmo“. A ‘Bíblia do Peregrino’ também acerta na tradução.
Deixemos a questão das versões em português e foquemos em boa exegese para entrar no coração da mensagem.
A palavra em questão é “κενόω” (Kenóo ou Kenóu, transliterada), que vem de “Kenosis“. Essa expressão é o que queremos entender. “Kenosis” significa exatamente “se esvaziar“.
Nós encontramos a mensagem de São Paulo na contraposição dessas expressões “harpágmos” e “kenosis“.
Jesus Cristo, a Segunda Pessoa da Trindade, poderia ter usado de Sua divindade para escapar da morte e vencer no mundo. Porém, seu objetivo não era vencer no mundo, mas vencer o mundo! Vencer o pecado e libertar o homem de uma escravidão ainda pior do que a física. Para isso, ele não explora a sua divindade, mas se esvazia completamente das coisas do mundo para nEle só reste a vontade de Deus. Dessa forma, e apenas dessa forma, o Senhor seria capaz de vencer o mundo e nos libertar do pecado.
Para entender plenamente a mensagem do Evangelho, precisamos entender o ato de humildade absoluta do Senhor. A começar pelo Natal. Tanto para se entregar à morte de cruz na Páscoa, como para se encarnar como uma pequena criança em Belém, o Senhor teve que se esvaziar de tudo o que poderia atrapalhar no mundo. Sua divindade nos foi revelada, mas não explorada por Ele para o ganho pessoal. Foi utilizada por nós, para a nossa salvação.
Neste Natal, é preciso esvaziar nossos corações das coisas do mundo, e fazer dele como a humilde manjedoura que recebeu aquele que é o Rei dos Reis, mas não se utilizou de Seu direito divino para se fazer ouvir ou entender. Precisamos nos esvaziar de tudo o que se coloca entre nós e Deus para entender perfeitamente a mensagem de Natal, uma promessa infinitamente bela de um Pai amoroso que envia o Seu Filho não para conquistar o mundo, mas nEle se sacrificar por amor. Se sacrificando até a morte na cruz, todos os joelhos se dobram ante Ele, e Seu nome é exaltado nos céus e na terra.
A divindade de Cristo não é diminuída, mas ampliada. Seria simples dominar o mundo. Difícil é fazer o homem abraçar a bênção e se converter. A verdadeira conversão não acontece em um único dia, mas é um processo para a toda vida.
Neste Natal, comecemos um novo tempo em nossas vidas nos esvaziando de tudo para que apenas Jesus Cristo ocupe o Seu devido lugar em nossos corações e mentes. Apenas assim a Encarnação terá real valor em nossas vidas.
Que nossos presépios sejam uma representação da união familiar dos que esperam, de corações esvaziados e humildes, que o Senhor ocupe com o Espírito Santo todo o nosso ser.
Um feliz Natal, e que Deus os abençoe em mais essa etapa da nossa jornada até o Pai.
Que a lição de humildade dada por São Paulo ecoe fundo em nossos corações.
Que Maria Santíssima, que com o seu ‘sim’ proporcionou o veículo perfeito para a vinda do Senhor, proteja as nossas famílias em todos os momentos.
Que Nosso Senhor Jesus Cristo, que esvaziou a si mesmo para nascer uma criança humilde e frágil, e mais tarde para se sacrificar por nós, nos guie no Seu caminho de amor e humildade.
Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,
um Papista