Traduzir e interpretar as Escrituras é difícil em qualquer versículo, por menor que seja ou mais simples que pareça. Como se não bastasse a dificuldade inerente da tradução ou interpretação bíblica, ainda existem algumas ‘cascas de banana’ do próprio texto.
Por exemplo: os profetas utilizam, diversas vezes e em alternância, as expressões ‘Jacó‘, ‘Israel‘ e ‘Efraim‘ para se referir à mesma coisa. Em alguns casos, isso quase dá um nó na cabeça do leitor. Eles dizem Israel se referindo ao reino do norte e, no instante seguinte, Efraim se refere ao reino do norte e Israel a todo o povo do antigo reino de Israel. Diferenciar é sempre um desafio. Assumir que uma palavra sempre se refere à mesma coisa pode ser um erro fatal na interpretação bíblica.
Outras passagens difíceis são marcantes na história da exegese. Na sua Segunda Carta aos Coríntios, São Paulo se refere a São Lucas, o “irmão que é elogiado em todas as igrejas por seu serviço ao Evangelho” (2Cor 8,18).
Essa é uma tradução comum dessa passagem. A questão é que o original Grego é “épainos en tó euaggélion” (ἔπαινος ἐν τό εὐαγγέλιον) seria “elogiado no Evangelho”, ou melhor expressando em Português seria algo como: “elogiado pelo Evangelho”.
Neste ponto, a coisa fica curiosa, pois Orígenes (que tinha o Grego como primeira língua) e São Jerônimo interpretavam essa passagem como se São Paulo estivesse afirmando que o Evangelho segundo São Lucas já estava circulando pelas igrejas e teriam tornado Lucas famoso entre os irmãos. Ou seja, essa passagem significaria algo como “elogiado pelo Evangelho que escreveu”.
É assim que São Jerônimo traduziu para o Latim: “fratrem cuius laus est in evangelio per omnes ecclesias“. O sentido, mais uma vez, é o literal.
Resolvido? Nem tanto! As evidências internas das cartas paulinas mostram que São Paulo sempre se refere ao Evangelho como “viver o Evangelho”, “a serviço do Evangelho” ou “a mensagem do Evangelho”, e nunca como um livro ou escritos sobre Cristo.
E aqui é importante frisar que, de fato, na Bíblia, a palavra grega para Evangelho, ‘euaggélion‘ (εὐαγγέλιον), nunca se refere a nada escrito. A palavra é usada aproximadamente 77 vezes no NT. Ou 76 vezes, dependendo das fontes usadas*, pois ‘Rm 15,29‘ só contém a expressão ‘do Evangelho‘ em algumas fontes, o que é outro desafio para a tradução e a interpretação. A expressão aparece em 12 versos nos Evangelhos, 2 nos Atos dos Apóstolos, e é usada 1 vez por São Pedro (1Pe 4,7), 1 vez por São João (Ap 14,6), e em incríveis 58 versos por todas as cartas de São Paulo (mais de uma vez por verso, em alguns casos), menos na carta a Tito. Todas elas se referem à Boa Nova, ou à vivência do Evangelho etc. Nunca sobre um livro.
Se isso está correto, outros intérpretes ainda do início da caminhada da Igreja estariam certos ao interpretar o original como quem diz que São Lucas era “elogiado pelo seu serviço ao Evangelho”.
Há ainda a possibilidade de São Paulo não estar se referindo a São Lucas, mas a São Barnabé, outro de seus discípulos. Parece estranho, mas é possível. Outros Pais da Igreja (São João Crisóstomo, por exemplo) achavam que a passagem se referia ao “serviço do Evangelho” e que o ‘irmão’ era São Barnabé. Essa possibilidade não pode ser descartada pelo mesmo motivo da outra: alguns Pais da Igreja identificavam São Barnabé nessa passagem.
Para se ter exata noção de quão difícil é interpretar essa passagem – e como se deve respeitar os Pais da Igreja como um ‘corpus’ da Tradição – Santo Tomás de Aquino, em seu comentário sobre ‘2Cor‘, apresenta as duas interpretações como possíveis (Frater iste, secundum quosdam, est Lucas, vel secundum alios Barnabas) e explica as duas hipóteses sem tratar qualquer uma como definitiva.
Como traduzir? Como anotar nas Bíblias? Como interpretar essa passagem? Se São Jerônimo e Orígenes estão corretos (e são dois ‘pesos pesados’ da tradução e interpretação bíblica), as implicações são muitas: a data de composição do Evangelho segundo São Lucas é bem anterior ao que muitos pensam; o Evangelho segundo Lucas teria sido amplamente vistoriado por São Paulo (e possivelmente por alguns dos 12 Apóstolos ainda vivos); e provavelmente já seria usado, em sua forma final, na Liturgia ainda durante a vida dos Apóstolos. E muitas outras possíveis implicações que não caberiam aqui.
É por essas e outras que é bom possuir várias traduções. Também é bom que as traduções modernas (depois de um árido período do século XX) respeitem uma tradução como a Vulgata, ao menos como fonte antiga, vinda de quem poderia saber algo que não se tem mais como verificar.
Na verdade, isso é mais que mera suposição. Podemos afirmar que São Jerônimo tinha ciência de fontes que se perderam. Por exemplo: em suas cartas, São Jerônimo afirmou que, no seu tempo, ainda existiam cópias da primeira versão do Evangelho segundo São Mateus, em Hebraico. Cópias que depois se perderam completamente. Esse tipo de conhecimento sobre fontes primitivas demanda que, no mínimo, o trabalho de São Jerônimo seja tratado ele mesmo como uma fonte e possível ‘critério de desempate’ em caso de certas dúvidas, como é feito com a Septuaginta (a tradução Grega para o AT) em caso de dúvida sobre o Hebraico original do AT. Tudo devidamente pesado, mas sem jamais descartar o testemunho da Patrística.
Sem também que se exagere, já que nem Santo Tomás de Aquino considerava a interpretação de São Jerônimo sobre essa passagem como definitiva. Com tudo isso, como saber ao certo? Aqui chegamos na questão da autoridade. Apenas o Magistério da Igreja poderia, por meio de um pronunciamento oficial, fechar a questão. Apenas uma unanimidade da Tradição que poderia definir a questão, mas essa unanimidade não existe. Será para sempre fonte de debate. Deixando claro também que, no caso de uma tradução, a definição não seria acrescentada ao texto, mas viria em notas de boas edições, por exemplo.
Uma posição definitiva não é necessária, pois a questão não muda nada da doutrina. Permanecerá um mistério e um convite à exegese e, principalmente, um lembrete de como tudo deve ser pesado e escrito com seriedade e estudo. Uma boa tradução comentada deve ter uma nota sobre essas possibilidades, sem jamais descartar totalmente uma hipótese bem fundamentada na Tradição. Essa é a posição do bom senso, como a de Santo Tomás de Aquino.
Qualquer um pode dar sua opinião, mas escrever em bíblias e comentários é outra coisa. O contrário demonstra ignorância ou a arrogância de quem se coloca acima dos Pais da Igreja e seus Doutores. A pesquisa bíblica sofreu muito quando os ignorou. Todos sofreram! É preciso que a boa exegese seja sempre uma luz a todos os fiéis, e a luz é a palavra da Igreja, não a de um ou de outro pesquisador ou teólogo, grupo ou denominação.
Enfim, eu espero que este exemplo sobre apenas uma pequena passagem mostre a todos como é difícil traduzir e encontrar o equilíbrio entre o literal e a interpretação; como é difícil interpretar e anotar uma Bíblia; como exegese bíblica toma tempo e recursos para consultas; como nem tudo é um ‘erro’, mas uma escolha entre a dificuldade de tradução e interpretação bíblica.
A tradução e a interpretação responsáveis demandam extensa pesquisa para cada verso. É preciso conhecimento sobre as línguas originais, sobre o Latim dos primeiros séculos, sobre os fatos históricos, mas também sobre o que a Sagrada Tradição ensina com a visão de quem recebeu dos apóstolos ou teve acesso a fontes que nós não temos mais. Sem contar a santidade e amor ao Evangelho que eles demonstram.
É preciso que boas traduções tenham boas notas; e que bons comentários levem em conta o conjunto dos escritos da Tradição. O bom teólogo, exegeta ou pesquisador católico deve sempre levar a Tradição na mais alta conta possível. Quando as vozes da Tradição não concordam, o trabalho se torna bem mais difícil, é verdade, mas também mais recompensador pela oportunidade de estudo e reflexão orante.
Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,
um Papista
* a fonte ‘Vetus Latina‘ (em Português chamada de fonte ‘Latim Arcaico’), que é a base para o Novo Testamento da Vulgata de São Jerônimo, não contém a palavra ‘Evangelho‘ em ‘Rm 15,29‘. São Jerônimo não traduziu o NT, apenas revisou uma parte dele com base na Vetus Latina e manteve esta passagem.
P.S. – outras hipóteses foram ventiladas, especialmente na pesquisa acadêmica moderna, como a passagem se referir a São Marcos, Erasto etc. Na Patrística, essas hipóteses não receberam atenção. Muitas delas são apenas vontade de alguns autores (especialmente protestantes) de contrariar e diminuir o valor das fontes da Patrística. O resultado é cada um tentando ser mais inovador do que o outro e dezenas de hipóteses diferentes sem qualquer possibilidade de comprovação.
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