Originalmente publicado no dia de Santo Agostinho, este artigo foi dividido em três partes para a minha página no Facebook: www.facebook.com/um papista
Em suas Confissões, Santo Agostinho contrapõe seguidamente a entrega às coisas do mundo e a entrega às coisas do céu; à concupiscência ou à virtude etc. Sempre mostrando como a alegria do mundo é atraente, mas fugaz.
Também há a preocupação de se opor ao Maniqueísmo de sua infância. Dessa maneira, Santo Agostinho rejeita um dualismo radical, citando como as coisas criadas por Deus são boas, mas apenas quando entendemos que a vida em Cristo as santifica, mas uma vida mundana as torna armas nas mãos das potestades demoníacas.
Em uma passagem(1) que sempre me encanta, Santo Agostinho fala do seu gosto pelo teatro. Há que se notar, porém, que o que ele chama de ‘teatro’ incluía também corridas de bigas e lutas de gladiadores. O próprio teatro encenado na época, segundo alguns comentários, era de baixa qualidade.
Agostinho diz que essas ‘peças’ eram como espelhos da sua própria miséria moral e, com isso, combustível para o fogo da sua concupiscência. “Como pode um homem querer se entristecer assistindo a sofrimentos trágicos que ele não aguentaria em si mesmo?“, pergunta ele.
Sua resposta é que o espectador deseja sofrer e assim que ele se diverte. Não é a mais vil das loucuras, pergunta ele, refletindo sobre o seu estado. Diz ele: “quando um homem sofre, isso é chamado miséria. Quando ele sofre o sofrimento do outro, é chamado de misericórdia“.
Ele está tanto fazendo um trocadilho com as palavras latinas ‘miseria‘ e ‘misericordia‘, em que a diferença é o ‘cor‘, que é coração. Em suma, o homem que se delicia com o sofrimento está levando uma vida miserável longe de Deus. Mas o homem que carrega a Palavra em seu coração, vive a Cruz ao sofrer com o próximo.
Essa é a resposta para o problema do mal! O Senhor conhece cada sofrimento nosso. Muito mais que conhecer, como um falso deus distante, Ele veio sofrer conosco; Ele sofre todos os dias conosco. Para entender isso é preciso amar a Deus e o próximo. Dividir o sofrimento do irmão nos faz entender a misericórdia do Senhor por todos nós, sem exceção.
Ao expor sua busca pelo verdadeiro amor, Santo Agostinho nos revela a mensagem bíblica que ele demorou para aprender, mas fez questão de vivê-la ao máximo e nos ensinar como ninguém jamais o fez, com um testemunho que ecoará pela história.
Parte 2:
No mesmo ‘livro’ das Confissões, Santo Agostinho conta como ele se perdeu no estudo da eloquência (oratória). Agostinho se tornaria um dos grandes oradores do seu tempo, ganhando causas e defendendo os interesses dos poderosos. No entanto, ele o fazia pelos motivos errados.
Em seus estudos, ele encontra uma obra de Cícero e entende por que ele era tão bem visto. Segundo Agostinho, por sua retórica, não por seu coração. Nesse ponto, Agostinho está se vendo na referida história. O livro em questão era ‘Hortensius‘(2), uma obra que se perdeu, a não ser por algumas partes. A obra fala da tentativa de Cícero para convencer Hortensius, um ‘advogado’ reconhecido por sua eloquência na defensa de políticos corruptos (certas coisas nunca mudam), da superioridade da verdadeira filosofia sobre a retórica sofista.
Ao se reconhecer na obra, Santo Agostinho diz que esse foi um ponto importante para a sua conversão. Se filosofia, diz ele, é o amor pela sabedoria, ela só pode ser encontrada em comunhão com o Senhor, para que a retórica maliciosa disfarçada de filosofia não prevaleça.
Em sua busca pela verdadeira eloquência, Agostinho cita ‘Cl 2,8-9‘ como um aviso contra a má filosofia, a que afasta o homem de Deus. Cícero carregava uma centelha da verdade. O que faltava, diz o santo, era o nome dela: Jesus Cristo.
Santo Agostinho nos mostra que muitas situações dolorosas, ou mesmo o contato com a beleza, nos referem a Cristo. Porém, é preciso que essa descoberta não pare antes de se chegar ao nosso destino, para que não se caia em armadilhas de grande eloquência. Essa busca e essa queda são o que Santo Agostinho mostraria em seguida, em mais uma etapa da sua caminhada.
Que todos possamos nos ver nas páginas das Confissões, como o santo se viu na obra de Cícero. Acima de tudo, que sigamos o santo em sua busca pela verdadeira beleza, ancestral e sempre nova, o princípio e a fonte, a Sabedoria encarnada, Jesus Cristo. Sem jamais interromper a viagem antes do nosso destino final; e tentando levar outros conosco.
Parte 3 – final
Após alguns episódios que acenderam a fagulha da fé, Santo Agostinho percebeu que, sendo a filosofia o amor pela sabedoria, era preciso buscar a Sabedoria (Divina, o Logos) para ser feliz como os filósofos que ele lia apenas supunham ser possível.
Agostinho dá uma chance à esperança de sua santa mãe e abre as Escrituras. O que ele encontra, segundo ele, não tinha a ‘majestade’ da escrita de Cícero. Tudo parece simplório e sem o brilho da retórica que ele consumia como gula. De fato, ele confirma o que Cícero vinha tentando alertar ao se encantar pela eloquência sem se permitir alegrar pela verdade.
O que ele leu, diz o santo, não podia ser alcançado pelos orgulhosos. O que parecia simplório era só simples, que exalava humildade e proclamava algo sublime para o viver. Só que ele não estava aberto a isso ainda. Daí começa uma importante analogia bíblica que Santo Agostinho repetiria muito, a sobre os ‘pequenos’ (parvulus).
No NT, o Senhor fala sobre ‘os pequenos‘. Em Grego, ‘népios‘ (νήπιος), que são tanto as crianças, como as pessoas simples no seu entender. De novo, não é um simplório, mas uma pessoa que não está contaminada pela má filosofia, pela retórica eloquente da falsa sabedoria. Uma pessoa que recebe a Palavra com humildade, apesar de sua busca por conhecimento. Alguém aberto ao Espírito Santo.
Essa distinção mostra o profundo entendimento de Santo Agostinho sobre a Sabedoria Divina. Algo que ele não captou antes porque tinha que sofrer. Principalmente, como vimos, sofrer com o próximo, descobrir o Senhor no amor, não na vaidade.
Sua presunção, diz ele, foi repelida pela simplicidade. Que bela imagem! Não é possível se aproximar do Senhor tentando projetar sobre Ele nossas impressões. A Verdade nos captura e lança em missão. Ela não se molda à nossa vontade, nós é que temos que nos permitir ser moldados pela Verdade que é o Senhor.
Enquanto Agostinho parecia um grande homem, ‘inflado pelo seu orgulho’, como ele diz, ele não conseguia se fazer pequeno para entender a profundidade do amor de Cristo. A centelha estava lá, mas, uma vez não harmonizada pela verdade da Igreja, nós fazemos dela um ‘fogo profano’, como o que custou a vida de Nadab e Abiú (Lv 10,1-2).
Aquilo que deve ser oferecido apenas ao Senhor, todo nosso coração, nossa mente e nosso espírito, quando não devidamente direcionado, se torna uma força destrutiva. Assim foi com Agostinho que, sem conseguir se tornar pequeno para entender a profundidade do amor de Deus, colocou seu fogo a serviço do mal com os Maniqueístas. A retórica era majestosa como ele queria ouvir, sem se importar que a verdade era simples como ele não queria ouvir naquele momento.
Tarde ele amou a verdade, nos conta Santo Agostinho. Com ele estava sua santa mãezinha, Santa Mônica. Em uma viagem por Cartago, Agostinho mente para a sua mãe e a deixa em um oratório para São Cipriano e foge para Roma. Santa Mônica não queria mais sair de perto do filho em queda livre espiritual. Ela chorava todos os dias em oração por ele. “Minha mãe“, dizia ele, “e que mãe!“. Deus não deu o que ela queria na hora, diz Agostinho, mas deu o que ela sempre quis em seguida: a sua conversão.
Em Milão, Santa Mônica busca ajuda santa. Ambrósio de Milão, Doutor da Igreja. Através deles, Santo Agostinho começa a sua viagem final. Sua luta interior seria constante e agressiva. Mas era tarde demais. A luz divina estava se fazendo presente em seu coração.
Sem conter as lágrimas, “um sacrifício aceitável ao Senhor” (Sl 51). “Até quando, Senhor?” (Sl 6), ele se perguntava. “Até quando, Senhor? Ficarás com raiva para sempre?“, “não olhe para nossas iniquidades passadas” (Sl 79[78]). Entre os soluços, ele ouve uma voz infantil: “tolle lege! Tolle lege!“, “Pegue e leia! Pegue e leia!“.
Ele se lembra de Santo Antão que, com a simplicidade da criança, leu e obedeceu: “Vai, vende os seus bens, dá aos pobres e você terá um tesouro no céu. Depois, vem e me segue!” (Mt 19,21).
Feito como um dos pequenos, ele abre e lê a sua vida nas páginas da Escritura: “não em festas ou bebedeiras, não em orgias ou devassidão, não em discórdias ou malícia; mas revista-se do Senhor Jesus Cristo e não faça provisão para a carne em sua concupiscência” (Rm 13,13-14).
“Naquele instante, ao fim da passagem, foi como se uma luz de absoluta confiança brilhasse em meu coração. Toda a escuridão da dúvida foi dissipada“
Quando ele abriu a Escritura em desafio, ela não se revelou a ele. Quando a providência o fez buscar respostas, a Escritura revelou o Senhor para Agostinho. Sua mãe viveria para ver a alegria do Senhor em seu filho. Questionada por amigos se ela não tinha medo de morrer longe de sua terra, ela disse: “não há nada longe de Deus. Eu não temo que Ele não me encontre nos confins da terra, de onde ele me ressuscitará“.
O grande retórico e professor entrega a sua vida ao Senhor. Invertendo o que disse Terêncio em sua peça (Andria), Santo Agostinho diz: “em uma diversidade de opiniões, que seja a Verdade a trazer harmonia”.
Muito além da vastíssima obra e a contribuição imensurável à Igreja, Santo Agostinho nos deixou a confissão mais bela da história, uma vida dedicada à Verdade que é Jesus Crito. Que sua caminhada seja a esperança de todos aqueles que querem descobrir a luz de Cristo ou trazer parentes e amigos para a fé. Que a providência divina nos ilumine sob a intercessão do grande Agostinho de Hipona.
Santo Agostinho, rogai por nós!
Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,
um Papista
(1) Confissões – Livro 3,II; 2 – citações traduzidas por mim
(2) – baseado na obra ‘Protreptikós‘ (Protréptico – Exortação), de Aristóteles, também pacrialmente perdida.